domingo, maio 29, 2011

Maria Helena Coimbra, uma Mulher determinante na minha vida

Julia Coutinho e M Helena Coimbra no dia 8 de Agosto 2008, naquele que seria o último encontro de ambas

No dia 27 de Março passado teve lugar uma Homenagem a Maria Helena Coimbra no Museu Escolar de Marrazes, que ela ajudou a nascer e implementar. Como sua aluna, afilhada e amiga, fui convidada a fazer uma intervenção. Deixo aqui o essencial do meu texto, tal como foi publicado no jornal Gazeta das Caldas. Foi uma honra poder dizer publicamente o quanto Maria Helena Coimbra foi importante na minha vida.


M HELENA COIMBRA, UMA MULHER DETERMINANTE NA MINHA VIDA


Tinha 14 anos quando me matriculei no curso nocturno da Escola Comercial de Caldas da Rainha. E assim conheci Maria Helena Coimbra, professora de Religião e Moral.

Parece que estou a vê-la: pequenina, um andar saltitante nos seus sapatos rasos, de «sola de ceilão», sorriso rasgado, voz de gaiata, e tão expressiva que parecia falar com o rosto todo. De uma energia contagiante, tinha o condão de nos aproximar de si, de nos fazer sentir como iguais. Uma proximidade feita de ternura e respeito. Com uma força de vontade enorme, os obstáculos não existiam porque, muito naturalmente, eram para ser superados. Era a nossa heroína. Queriamos ser como ela, desempoeirada, sem teias de aranha na cabeça nem macaquinhos na sótão. Uma mulher do seu tempo.

Estavamos na primeira metade dos anos sessenta e as aulas de Religião e Moral, eram tudo menos religião e moral. Eu já começara as minhas crises existenciais e os meus conflitos religiosos mas com as suas aulas aconteceu um apaziguamento. De tal maneira que ainda fui crismada e a Maria Helena foi minha madrinha. Não valeu de muito porque hoje sou ateia, mas a sua influência estendeu-se muito para além das questões da religião.

Vivia-se o Concílio Vaticano II e a Maria Helena trazia para as aulas a importância do Papa João XXIII que teve a coragem de convocar um concílio «tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades» colocadas à Igreja e à sociedade, contra os que nos tempos modernos apenas viam «prevaricações e ruinas (…) em comparação com épocas passados (…) e se portavam como quem nada aprendeu da História, que é também mestra da vida», conforme o discurso de abertura.

Lembro de discutirmos o Decálogo da Serenidade que contém 10 sugestões de conduta para quem deseja a paz. Todas as frases começavam: «Só por hoje» e recordo especialmente uma que suscitou grande debate na aula e me impressionou particularmente: «só por hoje, dedicarei 10 minutos do meu tempo a uma boa leitura, recordando que, assim como o alimento é necessário para a vida do corpo, a boa leitura é necessária para a vida da alma».

Maria Helena desdramatizava tudo descomplicava tudo e fazia-nos acreditar que eram possíveis os nossos sonhos por improváveis que parecessem. A todo o momento nos incentivava, nos incutia força e determinação, muitas vezes dando exemplos e sugestões que eram rastilho para o que nos pareciam (im)possibilidades. Mais do que religião, ela ensinou aos seus alunos a camaradagem, a fraternidade, a solidariedade, o trabalho, a dignidade e o respeito. Ensinou-nos a pensar. A acreditar. Ensinou-nos a cidadania.

Para mim era um exemplo a seguir. E, por coincidência, tinha o mesmo nome da mãe que tão cedo eu perdera: Maria Helena.
Um dia falei-lhe particularmente. Contei-lhe de mim e dos meus projectos. Generosamente, levou-me para o Museu José Malhoa, que dirigia. Durante dois anos, actualizei a inventariação do acervo museológico. Ensinou-me a escrever à máquina e a fazer palavras cruzadas, uma descoberta que me deixou maravilhada.

Lembro-me que com o primeiro dinheiro recebido quis comprar um livro e a Maria Helena aconselhou-me o «Não Matem a Cotovia» de Harper Lee, um livro que acabava de sair e que tratava dos Direitos Humanos e dos preconceitos raciais nos Estados Unidos, problemática que pela primeira vez se me colocou. Perdia-me na biblioteca do museu. Imaginem uma jovem de 15 anos, curiosa e sedenta de saber, rodeada de livros e obras de arte! Foi uma imersão que marcou para sempre a minha vida. E se hoje sou licenciada em História da Arte e sigo investigação a ela o devo também. Porque me incutiu esse gosto e me incentivou a lutar por ele.

Em 1966 passei a viver em Lisboa e a Maria Helena também me seguiria três anos depois. Foram longos tempos sem nada sabermos uma da outra. Só há cerca de onze anos a reencontrei e foi emocionante voltar a ver a minha querida professora, madrinha e amiga. Tinha urgência em falar-lhe de mim, do meu percurso de vida, e de como fios invisíveis mas inquebrantáveis sempre nos haviam unido. Penso que lhe terei dado alguma alegria com isso.

Sempre considerei Maria Helena como a «minha madrinha». Se analisarmos a palavra madrinha veremos que é a junção da palavra «madre=mãe» com o sufixo «inha=pequenina». Ou seja «mãezinha». A minha conclusão é de que madrinha significa, simbolicamente, uma mãe pequena ou, metaforicamente, uma segunda mãe.

Por outro lado, a palavra madrinha também designa «aquela que protege, que guia» e aí nunca existiram dúvidas, ela foi a pessoa que orientou os meus primeiros passos de jovem adolescente e quem me ensinou a caminhar sozinha. Devo-lhe essa imensa força.

Maria Helena tinha grande sentido de humor e sabia rir de si própria, uma qualidade rara e muito inteligente. Dizia que as coisas sempre lhe tinham acontecido inesperadamente, sem as procurar. E tinha razão. Vejamos como foi dar aulas de Religião e Moral sem nunca ter dado catequese. Filha de um anticlerical, ela e a irmã, Graça, apenas foram baptizadas aos 19 anos, por decisão própria. Sem qualquer formação religiosa, foi o próprio pai quem as preparou para a cerimónia. É que o anticlerical Augusto Dias Coimbra, era igualmente um especialista em Direito Canónico e conhecia a Bíblia como ninguém, estando apto, por isso a instruir as filhas.

Mais tarde, é convidada para dar aulas de Religião e Moral, o que a deixou surpreendidíssima. Maria Helena estava à frente do Museu José Malhoa e começara a contactar o Patriarcado para se fundar um Museu de Arte Sacra nas Caldas. Mas as suas qualidades humanistas impressionaram o padre com quem falava habitualmente e foi ele que a convidou para dar aulas na escola comercial da cidade. Aceitou, tal como aceitava todos os desafios que envolvessem a juventude. A Igreja queria uma «reviravolta nas aulas de religião e moral» e tiveram-na com Maria Helena. Talvez por ser independente, aberta e sem preconceitos. Pena não terem existido muitas mais professoras como ela.

Não sendo conservadora, Maria Helena era muito apegada às memórias e às tradições familiares. Falava com prazer da sua infância e da casa cor-de-rosa dos avós maternos, na Figueira da Foz. Uma casa enorme, onde nasceu por ser tradição lá nascerem todos os primos, e onde foi muito feliz, sendo com tristeza que mais tarde assistiu à sua venda. Tal como a cama onde nasceu, uma cama de ferro antiga, mas que uma tia pouco apegada ao passado decidiu vender. Era muito ciosa das coisas afectivamente importantes e simbólicas e o desprendimento de alguns familiares deixava-a desolada.

Tinha um amor incondicional pela família e adorava o pai, com quem manteve uma relação fortíssima. As suas memórias mais remotas de carinho estavam associadas ao pai, ao contrário da irmã, mais ligada à mãe. O amor pela família ia até ao sacrifício pessoal, se preciso fosse, como aconteceu quando o pai teve o primeiro enfarte, aos 49 anos, e decidiu interromper os estudos e ir trabalhar para que a irmã pudesse continuar a estudar. Casou com o Jorge nos anos setenta mas nunca se separou da Graça, a irmã mais nova um ano, mas de quem se sentiu protectora até ao fim da vida.

Um mês antes de falecer passei um domingo com ela, o Jorge e a Graça. Seria a última vez que estaríamos juntas. Levei comigo o gravador e a máquina fotográfica e, durante a tarde, tivemos uma longa conversa onde recordou a infância, a família, os estudos, a ida para o Museu, as aulas na Escola Comercial, a vinda para o Museu de Arte Popular, em Lisboa. São três cassetes com a sua voz juvenil, por onde desfilam as memórias, os afectos e os desafectos de uma vida preenchida e com alguns escolhos à mistura.

Foi assim que fiquei a saber do Museu Escolar de Marrazes. Falávamos do seu amor pelo coleccionismo, pela museulogia, da preocupação que sempre teve de que não se perdessem as memórias históricas, e que a levou a guardar tudo quanto eram objectos e documentos familiares. A certa altura disse: «olha, por isso é que eu estou a dar as minhas coisas antigas da escola, livros antigos do meu pai, provas da 4ª classe da minha mãe, coisas do meu avô… Fui guardando, guardando e agora vai tudo para o Museu de Marrazes. Já lá fui levar uma parte. Sabes que sempre tive esta ideia de juntar as coisas, de as preservar.» Soube, assim, da existência do Museu Escolar de Marrazes e das preciosas contribuições que dera para que o mesmo fosse uma realidade.

Prezava muito a Liberdade, e uma das recordações que tenho do nosso último encontro é ouvi-la afirmar: «sempre gostei muito das Caldas [da Rainha] porque, desde miúda, as Caldas [da Rainha] eram um local de Liberdade para mim!».

Maria Helena Coimbra teria feito 86 anos no passado dia 25 de Março. Partiu demasiado cedo para os que a amavam e para o muito que ainda poderia dar-nos. Pessoas como ela sempre disponíveis para os outros, lúcidas, activas e repletas de sabedoria, não deveriam partir… ou deveriam-no apenas quando o seu exemplo e o seu saber proliferassem e passassem de mão em mão, de boca em boca. Para que o mundo se tornasse melhor. Porque são pessoas assim, especiais, que fazem a vida acontecer.

Deixo-vos com um poema que fiz aquando da sua morte, em 24 de Setembro de 2008:

«Contigo / acreditei / nas minhas asas / e voei. / Ensinaste-me / o tropeçar/ o cair / o magoar. / Mas sempre / sempre / o (re)erguer. / Foste a pessoa exacta / no momento incerto. / Como posso dizer-te adeus?»


Julia Coutinho