quinta-feira, março 01, 2018

João Varela Gomes (1925-2018)






No momento em que nos despedimos para sempre de João Varela Gomes, quero prestar-lhe a minha sentida homenagem através de dois pequenos apontamentos.

1 - Em Novembro de 1961 Salazar realizou eleições de deputados à Assembleia Nacional e a oposição decidiu concorrer. Não foi nada fácil a constituição da lista oposicionista por Lisboa mas o então capitão João Varela Gomes teve a coragem de a integrar. Ficaram célebres as suas intervenções públicas, nomeadamente na sessão realizada a 3 desse mês no Teatro da Trindade. Do seu processo nos arquivos da PIDE/DGS respigamos algumas informações dos agentes da polícia política que fizeram a cobertura dessa noite. 
    
a) - "O capitão Varela Gomes disse o seguinte:  "Eu tenho notado que me têm distinguido com aplausos e quero endossar esses aplausos para o povo que tanto tem sido humilhado pelo Governo.  O Governo Salazarista não tem programa e quer sobreviver. Ele embarcou num navio de piratas que se chama fascismo. Imitando esse sistema ele criou a Mocidade e a Legião, e em 1945, sentindo-se atrapalhado criou o Campismo para a Mocidade e incumbiu a Legião da Defesa Civil do Território.
(…) Um grupo de aduladores e subservientes colocou Salazar num pedestal e nós iremos arrancá-lo desse pedestal. (…)  A única vitória que o Estado Novo até hoje conseguiu foi a de nos trazer a todos adormecidos e apáticos".
(SC SR 2846/58 cx 2829, doc 210, informação de "Jacinto Lemos")  
b) - (…) entre os diversos oradores destacou-se o capitão Varela Gomes que  (…)  foi muito ovacionado, com a assistência em pé. Foi de todos os oradores o que mais atacou o Governo e o senhor Presidente do Conselho
(SC SR 2846/58 cx 2829, doc 210, relatório do agente Martins Ferreira)

JVG a discursar no Teatro da Trindade em 3 Nov. 1961. Na mesa podem ver-se Augusto Casimiro, Luis Dias Amado, Lino Neto e Orlando Ramos, entre outros.


Assistência aplaude JVG no Teatro da Trindade em 3 Nov 1961



2 - Conheci Varela Gomes muito antes de o conhecer. Sabia de há muito os feitos, a coragem e o carácter forte e impoluto desse homem que era uma «força da natureza», no dizer do próprio filho, Paulo Varela Gomes,  mas o nosso encontro pessoal deu-se apenas em Março de 2007 aquando de uma série de conferências levadas a cabo pela Cooperativa Militar com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, subordinadas ao tema: Oposição Político-Militar ao Estado Novo, no 3º Quartel do Séc. XX, efectuadas nos dias 20, 22, 27 e 29 de Março de 2007.  Varela Gomes interveio no dia 27 e a sua comunicação deixou-me entusiasmada pelo que dava a conhecer do percurso antifascista mas também pela forma contundente como se referiu a duas comunicações anteriores, altamente reacionárias, de dois oficiais reformados da Força Aérea. Intervindo a seguir a eles, Pezarat Correia desmontara já esses discursos mas Varela Gomes não quis também deixar de responder aos dois saudosos do salazarismo. 

Tivemos oportunidade de conversar bastante e passados dias escreveu-me a dar conta das suas actividades de escriba interventivo e militante, ao mesmo tempo que enviava o jornal Alentejo Popular, sediado em Beja e onde colaborava, e os dois últimos números dos SAMIZDAT, como chamava aos caderninhos que escrevia e editava clandestinamente, conforme sublinhara.
Escusado será dizer que nunca mais deixei de acompanhar o meu amigo João Varela Gomes e tudo o que saía da sua lavra.







No entretanto, o Alentejo Popular terminou em 2012 e o sr Luis Alves Dias, dono da Livraria Ler e seu editor, faleceu em 2015, embora saibamos que a livraria retomou a actividade sob a direcção do filho e continua a ser um local de referência em Campo de Ourique. 

Deixo-vos o texto da comunicação de João Varela Gomes às Conferências da Cooperativa Militar. O autor acabou por falar de improviso com recurso a uns apontamentos que também estão em meu poder. Mas o conteúdo destas páginas, que JVG entregou previamente à organização, é de tal forma valioso que me parece importante chegar ao conhecimento do maior número de pessoas possível. Por elas se pode acompanhar o percurso combativo de um Homem e de um Militar que entre 1958-1974 escolheu estar contra Salazar e Caetano e ao lado das gentes do seu país. 
Um Homem a quem devemos muito do que somos. E que continua a ser desconhecido por muitos e mal-amado por muitos mais.

Perguntei-lhe porque não continuou o projecto das suas memórias iniciado com Tempo de Resistência, I Parte, (Jan 1962-Set 1963), da Ler Editora, 1980. Resposta: «porque ninguém lê, ninguém se interessa». É pena, digo eu. Todos ficámos a perder.