domingo, agosto 24, 2008

Antonio Charrua (1925-2008)




Antonio Charrua (Lisboa 6 Maio 1925 - Évora 21 Agosto 2008), foto de Frederico Mira George, 2002


O pintor morreu ... e foi ontem a enterrar, em Évora.
Talvez agora lhe (re) conheçam a Obra. É verdade que existem pessoas discretas sem apetência para se colocarem em bicos dos pés e António Charrua pertencia a essa rara estirpe. Cônscio do silenciamento a que o Homem e a Obra haviam sido votados, fez questão de referir em 2001: "paira sobre toda a minha obra uma ideia de morte, mas também a sua recusa".
António Charrua frequentou Arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, não tendo terminado o curso. Começa por expôr no Porto, em 1953, e nesse mesmo ano participa na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, na SNBA, em Lisboa. Esteve ligado aos "artistas resistentes" e foi sócio fundador da Cooperativa dos Gravadores Portugueses, GRAVURA, em 1956. Foi um dos 50 Independentes que expuseram em 1959 na SNBA. Em 1960 foi galardoado pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde está representado. Dedicou-se à pintura, à escultura, gravura e cerâmica.
Nascido em Lisboa em 6 de Maio de 1925, há muito que se recolhera à casa da família, na velha Rua da Mouraria, em Évora. E foi esta cidade alentejana que em 2005 lhe prestou homenagem instalando-lhe a escultura, - "Diálogo de Ícaro com o Sol" -, numa das rotundas da cidade.
Por sua vez, também o Museu Municipal de Évora havia organizado uma retrospectiva da sua obra, com a edição de um excelente catálogo, em 2001.

A revista Arquitectura e Vida entrevistou-o nessa altura. Invocando André Malraux para afirmar a "livre forma das Vozes do Silêncio", Antonio Charrua confessa:
"(...) o gesto é para mim decorrente da emergência da própria força do acaso que deverá ser assumida, embora nem sempre ele faça lei. Encontro-o tão exacto e irrepetível quanto a própria vida... como quando encontramos alguém no decorrer da existência. Há sempre uma timidez, uma supressão no humano. Nunca dizemos suficientemente as coisas essenciais às pessoas importantes, como por exemplo isto: amo-te."
 
Desapareceu um Homem e um Artista singulares. Que sabia não ser amado no seu país.


terça-feira, agosto 12, 2008

Apresento-vos a Elis Regina

Já conhecem o Miró. Hoje apresento-vos a Elis Regina, na foto tentando desalojar o Miró do cesto onde dormia calmamente. É o estilo dela: quando ele está muito sossegadinho no seu canto, ela, ladina e marota, salta para o seu lado e aninha-se à força, usurpando-lhe o espaço e deixando-o incomodado a ponto de o obrigar a mudar de poiso.
A Elis tem cinco anos e foi a minha amiga Ana Rebelo quem a foi buscar à "maternidade" e ma trouxe pequenininha e indefesa. Tive a surpresa de a encontrar quando cheguei a casa após uma cirurgia no Hospital dos Capuchos.
Lembro-me de chegar combalida e observar o Miró a um canto, a olhar curioso o novo membro da família, mas sem se aproximar, sem lhe dar confiança; enquanto ela, pequenina, retirada nesse dia à "família" mais parecia um passarinho assustado mas curioso, a cheirar todos os cantos da casa e a passear destemida mesmo nas "barbas" do Miró.
O nome surgiu-me naturalmente: a coragem desta menina acabadinha de chegar a um lugar desconhecido e a forma como se passeava imponente (apesar de cair imenso) frente ao gato da casa, desafiando-o, levaram-me a dar-lhe o nome da Elis Regina, a corajosa cantora-pimentinha que sempre admirei e que fez da sua vida um constante desafio que só a morte travou.
A Elis é uma sobrevivente e enfrenta todos os desafios. Ao contrário do Miró, mete tudo na boca e engole se lhe agrada. Por esse péssimo hábito já me pregou um grande susto. No seu primeiro Natal, e sem que eu desse por isso, engoliu uma fita natalícia. Começou a vomitar apesar do apetite que sempre a animava. Foi operada in extremis quando a fita já se enrolara nos intestinos e os estrangulava. Sobreviveu, felizmente.
Hoje, a Elis e o Miró são grandes amigos e não passam um sem o outro. Foi o melhor que fiz: ter dois meninos para fazerem companhia um ao outro.
E agora, meus amigos, vou de férias!
Até sempre!

sábado, agosto 09, 2008

Parabéns, Maria Keil !


Acreditam que a Maria Keil faz 94 anos? ! Pois é. Vendo-a, ouvindo-a, ninguém acredita. Mas a Maria (como gosta de ser tratada) nasceu a 9 de Agosto de 1914 em Silves cidade que este ano a homenageou com uma sala na nova Biblioteca que perpetuará o seu nome. Uma mulher simples e franzina que se mantém atenta e activa e que até há pouco se deslocava sozinha pela cidade tendo, aos 84 anos, só e de mochila às costas, visitado e calcorreado a Expo98.

Veio aos 15 anos para a Escola de Belas-Artes de Lisboa e em 1933 casou com o jovem arquitecto Francisco Keil do Amaral, de quem teve um filho, o Pitum. Oposicionista desde cedo militou no MUD e nas organizações de Mulheres. Participou nas Exposições Gerais de Artes Plásticas e teve um quadro apreendido pela PIDE, na II EGAP, em 1947. Foi presa em Dezembro de 1953 no aeroporto de Lisboa, com outras pessoas que esperavam Maria Lamas vinda do Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, tendo permanecido dois meses em Caxias.

No final dos anos 50 reinventou e relançou a azulejaria portuguesa: decorou as primeiras 19 estações do Metropolitano, gratuitamente. E apenas porque era proibido o figurativo recorreu aos padrões geométricos quebrando a simetria através da cor. Não a incomoda ser conhecida como "a mulher dos azulejos" mas ficou deveras magoada com a forma como as obras de renovação do Metro, há dez anos, lhe destruiram o seu trabalho. Sem contemplações. E porque foi um trabalho não pago viu-se impossibilitada de accionar um protesto legal.

«Não havia meios [financeiros]. Não me pagaram nada. Absolutamente nada. Ofereci as 19 estações que fiz. Tudo aquilo foi um trabalho que fiz no atelier do meu marido, para alegrar as estações que ele estava a desenhar e eram muito pobrezinhas. Ele queria qualquer coisa alegre lá dentro, para não ficar cimento armado e tudo cinzento. Agora não posso refilar por me andarem a picar as paredes porque, de facto, eu dei tudo.» confessa em 1999 a António Melo.

«Houve um arquitecto que veio aqui [a casa] falar sobre o que fizeram na estação dos Restauradores e me disse: "Pois é... Eu percebo que isto seja um grande desgosto para a senhora". Disse-lhe: "Não é um desgosto para mim. Para vocês é que é uma vergonha. Por isso é que veio falar comigo. Vergonha de picar uma parede sem dizer nada. Vergonha e ignorância". (...) «Infelizmente [a destruição] nem foi contra mim. Foi para ser diferente. Para fazer novo, moderno. Isto é que é grave, eles destroem o azulejo porque não lhe dão valor. É um padrão que se repete, logo é artesanato.» (...) «Mas a crítica que faço muito a sério é que o azulejo é uma coisa importante que os modernistas não apreenderam. Mesmo hoje muitos não conseguiram aderir à simplicidade do azulejo, porque aquilo é difícil demais para eles. Transformam-no em papel de embrulho»

Questionada sobre o tempo da resistência ou da democracia, responde:

«A guerra é um mal que é preciso evitar a todo o custo. (...) Há um quadro do Picasso que tem por título "A Guerra". Tem uma força de denúncia, que uma pessoa ao vê-lo sente que guerra, não! Mas "A Paz", que é um outro quadro dele, com meninas a fazer rodinhas e um sol a nascer, também não é vida. Sinto que é preciso procurar aqui uma alternativa a este manso, mole. Na vida é preciso alguma vibração. Ainda temos que encontrar essa vida.»


É um privilégio termos a Maria Keil connosco. Conheçam-na melhor aqui em 2000 e aqui em 2004










quarta-feira, agosto 06, 2008

Hiroshima, nunca mais

Pelas 8:15h do dia 6 de Agosto de 1945, Hiroshima foi arrasada pela primeira bomba atómica lançada pelos Estados Unidos. Paul Tibbets que comandava o B-29, "Enola Gay" (nome de sua mãe) fê-la detonar a 576m acima da cidade, prvocando um clarão que logo se transformou num gigantesco cogumelo de 9.000 m de altura provocando ventos de 640 a 970 km/h eque espalharam material radioativo numa espessa nuvem de poeira. A explosão provocou um calor de cerca de 5,5 milhões de graus centígrados, similar à temperatura do Sol. Foi até hoje a arma que mais mortes provocou num curto espaço de tempo; 221.893 mortos é o total das vítimas reconhecidas oficialmente. Num raio de 2 km, a partir do centro da explosão, a destruição foi total. A grande maioria das vítimas eram civis que nada tinham a ver com a guerra. Todos os sobreviventes ficaram afectados. Milhares de pessoas foram desintegradas e, na falta de cadáver, as mortes nunca foram confirmadas.
O comandante Paul Tibbets, falecido recentemente, jamais se arrependeu. Verdade seja dita que Truman também não.
Uma série de fotografias inéditas estão agora a ser divulgadas. Foram encontradas por Robert L. Capp, um militar norte-americano, nos arredores da cidade. Capp doou as fotos em 1998 na condição de apenas serem divulgadas em 2008. Caso tenhas nervos de aço, veja aqui toda a série.
Se não conseguirem aceder acima, visitem este site.
Testemunho dos Jovens de Hiroxima é um livro que reune testemunhos de crianças na altura, com prefácio de Bertrand Russel. Deixo-vos com o depoimento de Masayuki Hayashide, um menino que em 1945 andava na 4ª classe.
Quando a guerra redobrava de violência, o meu irmãozinho e eu fomos evacuados para Kaway no distrito de Takada. O meu pai, a minha mãe e a minha irmã mais pequena ficaram em Senda, Hiroshima. Nessa altura o meu irmão tinha seis anos e eu onze. A minha mãe enviou-nos, a mim e ao meu irmãozinho, muitas cartas.
Todas as vezes que eu lia as cartas, o meu irmãozinho perguntava: «In-chan (mano grande), quando voltamos para Hiroshima?» Fazia com tanta frequência esta pergunta que me feria os nervos, e por vezes, repreendia-o. Relembrando isto, compreendo que era uma coisa pouco razoável da minha parte e lamento-o agora. Ele desejava tanto ir para casa que o meu avô por fim cedeu e uma semana antes do lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima ele levou-o aos meus pais. Ao vê-lo partir, invejei-o. Agora, sinto pena de mim mesmo, pois era o irmão mais velho.
Depois disto, no dia 6 de Agosto, no momento em que iam começar as aulas e a campainha tocava para a entrada, um relâmpago e Bum!! ouviu-se um estrondo terrível. As janelas de vidro da escola estilhaçaram com violência e no céu para leste uma nuvem de fumo branco inflamou. Fiquei assustado e escondi-me no abrigo da escola. Momentos depois, como não ouvisse mais ruídos, saímos cuidadosamente de rastos para observar. Começou a dizer-se que fora atacado o aeródromo de Kamine.
Uma manhã bem cedo, quatro ou cinco dias depois, o meu avô arranjou lugar num camião e partiu para Hiroshima. A avó e eu tínhamos acabado de cear e ido para a cama quando ouvimos, já meio adormecidos, bater à porta. Quando a avó abriu o meu avô entrou. Segundo a sua história, Hiroshima estava completamente em ruínas. Quando foi a Senda, encontrou o meu pai apenas com uma beliscadura no braço, mas a mãe tinha o corpo todo queimado, bem como o meu irmão e a minha irmã; mas estes estavam já mortos.
Na manhã seguinte, a avó e eu fomos de autocarro a Kabe e dali partimos a pé para Yokogowa. Quando lá chegámos, não quis acreditar que o que os meus olhos viam fora Hiroshima. Mal conseguíamos perceber onde nos encontrávamos. Por fim, seguindo as linhas dos eléctricos chegámos a Senda. A casa estava totalmente destruída. Uma pessoa que vivera perto de nó aproximou-se e disse-nos onde se refugiara a mãe e dirigimo-nos para o parque de Yamanaka.
A mãe estava completamente prostrada. O seu cabelo caíra quase todo. Tinha o peito em chaga e de um buraco nas costas saiam e entravam vermes. O local encontrava-se cheio de moscas e mosquitos e um odor nauseabundo empestava tudo. Para onde quer que olhasse só via pessoas imóveis. A partir da noite em que chegámos, a mãe piorou e parecia que a víamos enfraquecer diante dos nossos olhos. Como durante toda a noite tivera dificuldade em respirar, fizemos tudo o que pudemos para a aliviar. Na manhã seguinte eu e a minha avó cozinhámos a açorda. Quando a levámos à mãezinha ela soltava o último suspiro. Quando pensámos que deixara de viver, ela respirou profundamente ainda uma vez e não voltou mais a respirar. Eram 9 horas da manhã de 19 de Agosto. No local do Hospital da Cruz Vermelha Japonesa, o odor dos corpos que cremavam era intenso. A dor demasiada fez-me parecer um estranho a mim mesmo, e a despeito da minha dor não consegui chorar. Era como se o meu irmãozinho tivesse vindo para Hiroshima de propósito para morrer. Por que não o retive uma semana mais? A minha pena é maior do que a posso suportar. O meu irmãozinho e a minha irmã já estavam ambos mortos antes de eu voltar.
Depois o meu pai e eu levámos uma vida difícil. Sentimo-nos sós sem a mãe e os pequenos. Mesmo agora, quando penso neles, parece-me ouvir o meu irmãozinho chamando «In-chan!» (mano grande) e a minha irmã «Ah-chan!» (mamã).
Podem imaginar que vida tão dura o pai e eu temos levado? E quantas pessoas foram ainda mais infelizes do que nós? Eu, que conheço os malefícios da bomba atómica, acredito que devemos fazer o possível para que não haja mais guerras.
Rezo para que toda a gente recorde o dia 6 de Agosto, de maneira que haja paz eterna.

(Testemunhos dos Jovens de Hiroxima, trad. de H. Silva Letra, Portugália Editora, Lisboa, 1965)