sábado, julho 29, 2006

Carta a Frank




Escrevo-te esta carta com o coração apertado. Deixo a análise fria para a razão cínica que domina o comentário politico ocidental. És um dos intelectuais judeus israelitas - como te costumas classificar, para não esquecer que um quinto dos cidadãos de Israel são árabes - mais progressistas que conheço. Aceitei com gosto o convite que me fizeste para participar no Congresso que estás a organizar na Universidade de Telavive. Sensibilizou-me sobretudo o entusiasmo com que acolheste a minha sugestão de realizarmos algumas sessões do Congresso em Ramalah. Escrevo-te hoje para te dizer que, em consciência, não poderei participar no congresso.

Defendo, como sabes, que Israel tem direito a existir como país livre e democrático, o mesmo que defendo para o povo palestiniano. Esqueço, com alguma má consciência, que a Resolução 181 da ONU, de 1947, decidiu a partilha da Palestina entre um Estado judaico (55% do território) e um Estado palestiniano (44%) e uma zona internacional (os lugares santos: Jerusalém e Belém) para que os europeus expiassem o crime hediondo que tinham cometido contra o povo judaico. Esqueço também que, logo em 1948, a parcela do Estado árabe diminuiu quando 700 mil palestianianos foram expulsos das suas terras e casas (levando consigo as chaves que muitos ainda conservam) e continuou a diminuir nas décadas seguintes, não sendo hoje mais de 20% do território.

Ao longo dos anos tenho vindo a acumular dúvidas de que Israel aceite, de facto, a solução dos dois Estados: a proliferação dos colonatos, a construção de infra-estruturas (estradas, redes de´água e de electricidade), retalhando o território palestiniano para servir os colonatos, os check points e, finalmente, a construção do Muro de Sharon a partir de 2002 (desenhado para roubar mais território aos palestinianos, os privar do acesso à água e, de facto, os meter num vasto campo de concentração). As dúvidas estão agora dissipadas depois dos mais recentes ataques na faixa de Gaza e da invasão do Líbano. E agora tudo faz sentido.

A invasão e destruição do Líbano em 1982 ocorreu no momento em que Arafat dava sinais de querer iniciar negociações, tal como a de agora ocorre pouco depois do Hamas e da Fatah terem acordado em propor negociações. Tal como então, foram forjados os pretextos para a guerra. Para além de haver milhares de palestinianos raptados por Israel (incluindo ministros de um governo democraticamente eleito), quantas vezes no passado se negociou a troca de prisioneiros?

Meu Caro Frank, o teu país não quer a paz, quer a guerra porque não quer dois Estados. Quer a destruição do povo palestiniano ou, o que é o mesmo, quer reduzi-lo a grupos dispersos de servos politicamente desarticulados, vagueando como apátridas desenraizados em quadrículos de terreno bem vigiados. Para isso dá-se ao luxo de destruir, pela segunda vez, um país inteiro e cometer impunemente crimes de guerra contra populações civis. Depois do Líbano, seguir-se-ão a Síria e o Irão. E depois, fatalmente, virar-se-á o feitiço contra o feiticeiro e será a vez do teu Israel.

Por agora, o teu país é o novo Estado pária, exímio em terrorismo de Estado, apoiado por um imenso lóbi comunicacional - que sufocantemente domina os jornais do meus país - com a benção dos neoconservadores de Washington e a vergonhosa passividade da UE. Sei que partilhas muito do que penso e espero compreendas que a minha solidariedade para com a tua luta passa pelo boicote ao teu país. Não é uma decisão fácil. Mas crê-me que, ao pisar a terra de Israel, sentiria o sangue das crianças de Gaza e do Líbano (um terço das vítimas) enlamear os meus passos e embargar-me a voz.

(Boaventura Sousa Santos, in Visão, 27 Julho 2006)

segunda-feira, julho 24, 2006

O menino e a paleta



No hotel, o único hotel daquela cidade, tão pequena que parecia ser a primeira cidade construída no mundo, o meu amigo, meu único amigo naquele momento único, contou-me a história de um menino que desenhava tudo, as flores, as nuvens, os peixes e as estrelas, em cinzento, um cinzento uniforme e triste.

As paredes da sala estavam cheias de quadros dos alunos, numa generosidade, num esbanjamento de cores que fazia sorrir os olhos da gente. Mas, no meio de toda aquela paleta, um desenho cinzento contrastava, doia, fazia pensar. E os professores, convencidos que o menino era daltónico, resolveram mandá-lo ao médico para obterem confirmação do que pensavam.

O médico observou e interrogou o menino, que gostava de cores, saboreava as cores, punha tanta força no que dizia que o verde dos insectos tinha reflexos metálicos, o arco-íris dos pássaros voava, cantava, tão feliz e evidente que só um louco poderia falar de daltonismo. Aquele menino era normal, captava todas as cores, remexia nelas como quem mergulha numa piscina, atirava ao ar o amarelo, o azul, o laranja, o lilás, num jogo malabar, exacto, impressionante, sem hesitações.

Voltou o menino à escola e a curiosidade, quase inquietação, voltou ao cérebro dos professores. E disseram ao menino que passasse o fim-de-semana desenhando e trouxesse de casa cinco trabalhos diferentes que ele próprio deveria escolher. Vieram os desenhos: uma zebra correndo, uma girafa fugindo de um leão com seu pescoço longo, longo, longo, um cacho de bananas no chão congolês, as montanhas pardas do Ruanda Urundi, o sol vermelho mergulhando no rio, tudo cinzento, implacavelmente cinzento, inexoravelmente cinzento. Foi então que os professores chamaram burro ao médico, olharam o aluno com olhos assustados e resolveram visitar os pais do menino nesse mesmo dia.

E lá foram, em comitiva, o mais velho levando a criança pela mão como quem ajuda um enfermo e os outros seguindo, com caras fechadas, graves e ridiculamente solenes. A ladeira era íngreme, o bairro carcomido, e a casa tinha frinchas, buracos, marcas e socos do tempo. Os pais do menino, com gestos amedrontados, pediram desculpa de só terem três cadeiras e os professores falaram dos desenhos do aluno avançando lentamente, preparando terreno, como quem vai anunciar uma desgraça. E afinal tudo era tão simples quanto cruel. O menino não tinha, nem nunca tivera, lápis de cores.

Saímos do hotel curvados pelo peso daquela história. O tempo mudara e tudo era chumbo e cinza è nossa volta. Como nos desenhos do menino pobre.



(Sidónio Muralha, in O Andarilho, Prelo, 1975, pp.19-21)

quinta-feira, julho 20, 2006

Parabéns, Raquel



A Páginas Tantas...

Feliz Aniversário

"Vai, semente,
cresce, germina,
rompe os prédios,
fura o telhado,
estoira o mundo,
rasga as núvens,
racha o céu,
enche a noite de novas estrelas
que riem, sofrem e choram
feitas de carne humana."

Amiga,

Acende o archote dos tempos
Para iluminar novos tempos
que outros tempos
tempos traz.

(sobre poema de J Gomes Ferreira)


sábado, julho 15, 2006

Notícias do bloqueio

Aproveito a tua neutralidade
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos em silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia como um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vais pois e conta nos jornais diarios
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

(Egito Gonçalves)


Publicado em 1953, este poema circulou semi-clandestinamente sendo grande a repercussão alcançada entre as hostes oposicionistas. Influenciando toda uma geração de jovens poetas, «Notícias do Bloqueio» foi o nome escolhido por alguns deles ao decidirem editar um fascículo de poesia,entre 1957-1962, a partir do Porto, publicação que constituíu um marco na resistência à ditadura de Salazar.

quinta-feira, julho 13, 2006

Para o meu amigo LR

Nenhuma viagem se compara à tua
Tu navegas numa ilha
E só nessa ilha podes viajar
Em qualquer viagem da tua vida

A tua ilha é sempre no ilhéu do coração
E com o teu olhar e os teus passos
Propagas-te e dilatas-te no espaço
Na surpresa de tudo ser o que é
E não ser
E assim te perdes sem te perderes
Como quem atravessa um muro
E respira com a sua sede
De respirar

Às vezes parece-te que a tua vida não é a tua vida
Mas foi a vida que te deu a vida
E nada se parece contigo
E em tudo viajas no assombro de navegares
Sem conheceres bem o teu rumo
Com a coragem de quereres vir ao encontro
Da verdadeira vida
Fora de ti longe de ti
Transformada em ti.

(Antonio Ramos Rosa, 21-02-04)

sábado, julho 08, 2006

Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) e "os cafres da Europa" - II



Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989)


A 1 de Janeiro de 1949 iniciara-se a campanha eleitoral para a Presidência da República. Pela primeira vez aparecia um candidato oposicionista, o General Norton de Matos. Iam ser postas à prova as "eleições livres e democráticas" prometidas por Salazar.

A imprensa trazia para a ribalta a voz da oposição.

Segue-se a entrevista a Manuel Rodrigues Lapa, publicada no Diário de Lisboa de 5 de Janeiro de 1949.

Como se sabe, Manuel Rodrigues Lapa seria preso no dia seguinte e encarcerado no Aljube, sendo solto a 10 do mesmo mês.

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ENTREVISTA 


Com a abertura do período eleitoral, logo se anunciou que se iam fazer criticas severas à obra da actual situação, e o próprio Governo declarou que esperava essas criticas e não se oporia a que fossem apresentadas, com perfeita liberdade de expressão. Um dos aspectos que mais têm sido focados pelos que se opõem ao regime vigente é o que se refere ao ensino. Aproveitámos um encontro com um dos mais categorizados professores universitários da oposição, para abordar, precisamente, este problema.

O nosso entrevistado é o professor dr Manuel Rodrigues Lapa, erudito a quem se deve uma obra valiosa de investigação e vulgarização literária. Depois de completar os seus estudos em Paris, o prof Rodrigues Lapa entrou na Faculdade de Letras de Lisboa, onde regeu a cadeira de Filologia e Literatura Portuguesas até Maio de 1935, em que foi demitido por motivos políticos, incluído na primeira lista dos funcionários afastados conhecida sob a designação de «Lista dos 33». (…) Foi director do semanário O Diabo de 1935 a 1937. Actualmente (…) trabalha numa reedição das suas «Lições da Literatura Portuguesa, das Obras de Tomas António Gonzaga, que publicou no Brasil, e da Estilística da Língua Portuguesa. Dirige, além disso, a colecção de Textos Literários da «Seara Nova».

Considerado uma das nossas maiores autoridades em assuntos de literatura portuguesa, o professor Rodrigues Lapa é geralmente conhecido como um dos mais firmes adversários da actual situação politica. Eis a razão por que, neste momento, a sua opinião se reveste de particular interesse.

P – Que pensa, como professor, sobre os problemas do ensino durante este regime?

R – Se nos vários departamentos da governação e administração muito há a criticar, os erros, quase diria os crimes em matéria de educação são de tal ordem, que excedem o que de pior se pode imaginar a tal respeito.

P – Diga então…

R – Não é agora a altura de entrar em pormenores, que terão cabimento em outro lugar e poderão esconder, tal a sua espessura, a verdadeira face do problema. As criticas serão feitas por entidades competentes e especializadas.

P – Mas o doutor …


A Situação do Ensino

R – Eu não me escusarei a fazer também essas criticas concretas e indispensáveis. Na próxima reunião de sábado, na Voz do Operário, tenciono mesmo apresentar um trabalho de critica ao ensino universitário – aquele, naturalmente, com o qual mais tenho contactado.

Por agora, o que já lhe posso dizer é esta cruel realidade: retrocedemos mais de um século nos princípios e nos métodos educativos. Tudo o que a Republica criou, logo após o seu advento, inspirada nas concepções do progresso e da liberdade, com uma franqueza por vezes ingénua, mas simpaticamente generosa, foi suprimido ou abastardado pelos pedagogos da Ditadura. E vê-se bem porquê. A principal preocupação dum regime despótico é deformar a alma simples e generosa da mocidade, porque tem a convicção, bem fundada, de que, se ela lhe foge, não encontra condições de sobrevivência. Por isso, lança mão da escola, logo a seguir aos quartéis. E que faz então? Com atropelo dos mais sagrados princípios da ciência da educação, procura levar para a escola a disciplina imposta dos quartéis, a sua férrea hierarquia, o sentido da obediência passiva. Nem por um momento lhe acode, nem pode acudir, que a alma da criança é como a flor, que precisa de ar e luz para viver; e que só com os estímulos da liberdade a criança se conhece e se revela.

Entramos então no capitulo da «pedagogia heróica», que é o contraposto da verdadeira pedagogia: rufos de tambor, marchas pelas ruas da cidade, braços ao alto e a algazarra das canções agressivas. Os pais e as mães contemplam tristemente os seus filhos, desviados dos seus deveres de estudantes pacíficos para esta mascarada bélica e ruidosa. É a isto que se chama nacionalismo, uma coisa que parece ter sido inventada pela Ditadura … Este espectáculo, que reduz o mocinho à condição mesquinha de autómato, cessa mais ou menos, quando o estudante entra para a escola superior, já com barba na cara, um pedacinho de homem. A inteligência e o carácter já estão meio formados. O ambiente das Universidades, agora purificadas da lepra dos maus professores, as lições dos conspícuos catedráticos, graves nas suas cadeiras vitalícias, acabam por fazer o resto: é mais um bacharel submisso que se senta à mesa do orçamento, ruminando sossegadamente a sua ração diária, feliz, tranquilo, só saindo do seu beatifico torpor, quando se trate de assistir a uma dessas manifestações espontâneas sugeridas pelo seu superior hierárquico.

É destes cidadãos que a Ditadura quer fabricar em série, através das suas escolas? Que lhe prestem; mas, ou muito nos enganamos, ou a mocidade de hoje, permeável às solicitações do ambiente, contrário ao regime, recebendo incitações da parte culta e sã da Nação, não se deixa totalmente corromper e encontra em si mesma e no ar que respira o antídoto contra os venenos que lhe querem instilar. Pobre mocidade! Nós a salvaremos da ignomínia e da servidão. Nós lhe incutiremos o verdadeiro nacionalismo, que é o culto da verdade no amor da Pátria, a compreensão fraterna e o sentimento da humanidade.


O Modelo Político

P – Vê-se que as suas preocupações politicas continuam vivas. Que pensa do momento politico actual?

R – Ora! O que pensa toda a gente de bom senso: que é chegada a oportunidade de acabar sem sobressalto, com este estado de coisas, que nos envergonha como europeus (continuamos a ser os cafres da Europa, como nos alcunhavam no século XVII), e nos está causando graves inconvenientes, impedindo que possamos entrar na grande família das Nações Unidas. O regime que há 22 anos nos desgoverna e nos oprime – apesar do rótulo de «democracia orgânica» com que o quiseram camuflar – não tem a menor possibilidade de ingresso, a não ser que se dê a mudança das instituições vigentes, com base nos princípios da verdadeira democracia.

Insisto no adjectivo verdadeira: regime do povo, pelo povo e para o povo, considerado na sua totalidade e com igualdade de todos os cidadãos e a mesma garantia de acesso aos bens da vida. O termo anda de tal modo adulterado, que é necessário reconduzi-lo ao seu significado genuíno, que não pode deixar de ser o que apontei. Enfim, meu caro amigo, e revertendo ao principio, se houvesse nos homens da Situação um pouco de senso-comum e não estivessem muitos deles soldados a isto por interesses que não têm nada de espiritual, era chegada a ocasião de se escapulirem pelas traseiras, com menor prejuízo para a integridade do físico. Mas sucede com eles o que sucede com todos os regimes em decomposição: quanto menos crêem na sobrevivência das instituições que os mantêm, mais aferradamente se empenham na sua defesa.

P – Pensa então que o regime actual se aproxima do fim?

R – Sem duvida. É uma corrida vertiginosa para o abismo. Em 22 anos de Ditadura não convenceram ninguém; e muitos que ajudaram o monstro a nascer, desiludidos e ultrajados, já viram as armas contra ele. Chega a ser cómico o trágico desta situação, que apenas se segura no alto duma baioneta.

A Posição do Escritor

R – Sou escritor e orgulho-me de ter sido algum tempo jornalista, director do jornal O Diabo, órgão da oposição, já se vê. O que passei nesse tempo com a Censura daria para contos largos: paginas inteiras deitadas abaixo pelo lápis azul, o mais vivio e acerado do pensamento obrigado a um silencio injusto, tudo isso, toda essa revolta acumulada na alma, marca um homem para sempre. Desde esse momento compreendi a trágica situação de muitos jornalistas submetidos à censura. Um jornalista manietado, que não ausculta livremente a opinião publica, que se vê forçado a publicar versões falsas ou deturpadas dos acontecimentos, deve sofrer muito. É realmente de endoidecer. Por isso, é aproveitar esta liberdade que nos concedem, de muito má vontade, encher os pulmões de ar fresco e dizê-las boas e bonitas. O dever dos escritores – não consideramos como tais certos escribas arregimentados – é e sempre foi, nos períodos culminantes de crise, como esta que atravessamos, dar o corpo ao manifesto, servir as aspirações do povo, comungar com ele no seu anseio de liberdade e justiça.

P – Defende, portanto, a participação activa do escritor na propaganda política?

R – Pois claro. Não traímos a nossa missão, descendo de vez em quando do nosso gabinete à praça publica, onde rumorejam as multidões do povo que trabalha. Ele precisa de nós, do nosso saber, a que ainda não chegou, do nosso conselho. Nós precisamos dele, da sua energia pura e palpitante, do seu entusiasmo criador.

P – E qual a posição do escritor em face dos actuais problemas políticos nacionais?

R – Estou absolutamente convencido de que a grande maioria dos escritores portugueses está, neste lance decisivo, ao lado do candidato que consubstancia as aspirações do povo e que promete solenemente dar-lhes satisfação, empenhando nisso a sua honra de soldado, que o é de verdade, como o provam a sua acção em África e por ocasião da outra Guerra, ao serviço duma grande causa civilizadora. Não é o homem que sobretudo nos interessa: é o que ele simboliza para nós: um ideal de Democracia actuante, que conduza o País pela via do Progresso e da Liberdade.


in Diário de Lisboa de 5 Janeiro 1949

terça-feira, julho 04, 2006

Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) e "os cafres da Europa" - I

 
Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989)


Manuel Rodrigues Lapa foi preso pela PIDE em 6 de Janeiro de 1949, em plena campanha eleitoral para eleição do Presidente da República. Enquanto apoiante do candidato oposicionista Norton de Matos, e ao abrigo da liberdade de imprensa do momento, o jornal Diário de Lisboa publicara uma entrevista onde Rodrigues Lapa afirmava que continuam a considerar-nos «os cafres da Europa como nos alcunhavam no século XVII». Esse o seu crime.
Já em liberdade, e ainda em período de campanha eleitoral, Rodrigues Lapa enviou para o Diário de Lisboa um documento que intitulou Em Legítima Defesa mas foi impedido de publicar.  É esse documento que aqui se transcreve.


Em Legítima Defesa
(Nota enviada ao Diário de Lisboa em 18 de Janeiro de 1949, impedida de publicar pela censura)


No dia 6 do corrente fui preso à porta da minha residência. Chegado à Policia Internacional e de Defesa do Estado, entregaram-me um papel: era o mandado de captura. Nele vi que estava incriminado pelos artigos 149 e 174 do Código Penal. Devia ser «um caso sério», como diria um dos meus futuros camaradas de prisão; mas como não estou habituado àquela amena literatura do Código, não soube de que se tratava, calculando embora que fosse por motivo da minha entrevista no Diário de Lisboa. Fui conduzido ao Aljube. À entrada do cárcere, deparei com dois homens, avergados ao peso de atrozes responsabilidades: um deles, o Quesadas Sanches, do Barreiro, cometera um crime imperdoável – fora apanhado com o livro do Sr General Norton de Matos, e ali estava havia mais de um mês; o outro, um rapagão de Monte-Redondo, o Pancadares, perpetrara crime ainda mais hediondo: projectara organizar uma escola nocturna e uma pequena biblioteca e era ainda acusado de «andar a espalhar panfletos à mão armada» (!). Estão a ver os propósitos sinistros daquele homem e como ele inventou um método eficacíssimo de propaganda: chegar ao pé dum sujeito, largar dois tiros para o ar e meter-lhe nas unhas o papelinho…

Só no dia seguinte soube, positivamente, devido ao esclarecimento do meu advogado, o rol dos meus crimes: produzira falsas afirmações susceptíveis de fazer perigar o bom nome, o crédito e o prestígio de Portugal no estrangeiro; instigara à desobediência colectiva; incitara, enfim, à luta politica pela violência ou pelo ódio. Fiquei atónito; mas olhei para dentro de mim e não vi as negridões de que me acusavam. Como é que um pobre estudioso de gabinete podia ser tão mauzinho? E então começou a fazer-se luz na minha consciência: eu, acusado de instigar ao ódio, contra a própria letra das minhas afirmações, tinha sido vitima de uma conspiração odiosa; eu, acusado de desprestigiar o bom nome de Portugal, contra toda a evidência da minha obra, estava sendo perseguido pelos que, a cada momento, pelos seus actos, o desautorizam nas esferas cultas e responsáveis do estrangeiro. Era engraçado, não era?

O mais curioso foi aquela peregrina nota do Ministério da Justiça, publicada nos jornais do dia 7, obra-prima de hermenêutica que vale a pena transcrever na integra:

«Em declarações prestadas ao Diário de Lisboa, o Dr Manuel Rodrigues Lapa, depois de considerar os portugueses como os cafres da Europa, numa continuidade que parece, segundo a opinião expressa, vai do século XVII até aos dias de hoje, atribui a esta incrível inferioridade a impossibilidade de entrarmos como nação (em igualdade de condições com a Inglaterra ou a Libéria, a França ou a Abissínia) na grande família das Nações Unidas. A gravidade da injuria feita a todo o pais, além de outras afirmações que os tribunais julgarão, determinou a instauração de procedimento criminal»
Compare-se agora esta nota com o texto incriminado, e logo se verá a grosseira deturpação das minhas palavras e a precipitação nervosa dos cavalheiros, que queriam à fina força molestar-me e o conseguiram: «é chegada a oportunidade de acabar, sem sobressalto, com este estado de coisas que nos envergonha como europeus (continuamos a ser os cafres da Europa, como nos alcunhavam no século XVII), e nos está causando graves invonvenientes, impedindo que possamos entrar na grande família das Nações Unidas».

Não haverá no gabinete do Senhor Ministro da Justiça alguém que conheça as leis elementares do português literário? Que ligação intima haverá entre a frase já célebre dos cafres, metida cautelosamente entre parênteses, e o que se segue a respeito do nosso ingresso nas Nações Unidas? E a que propósito vem aquela referência à Libéria e à Abissínia? Pois não é absolutamente claro que essa imagem literária atinge não o País, não a Nação, não a Pátria, que do coração estremecemos, mas as instituições transitórias que a envilecem, reduzindo-a, pela incultura, pela barbárie supersticiosa e pela tirania, a uma espécie de tribu cafreal? Pois não é verdade que nós reconhecemos dolorosamente esse facto e que tudo faremos para que assim não seja, reintegrando a Pátria, redimida e purificada, no lugar que lhe compete em meio das nações civilizadas? Pois não é evidente que a repulsão que sentimos por este Governo, que representa uma escassa minoria da Nação, nos é ditada pelo nosso ardente amor da Pátria, que haveremos de servir e honrar através de todos os sacrifícios?

Mas noto que a indignação me faz esquecer… Moderemos o tom, para mais jocoso, e vejamos melhor agora aquela frase alusiva aos cafres, que parece ter irritado sobremodo os homens da Situação. O pobre do Casais Monteiro já sofreu as consequências da simpática solidariedade que teve para comigo: ferraram com ele no Aljube. Agora só falta ir para lá o Senhor Henrique Galvão; e o próprio Senhor Presidente do Ministério não estará muito seguro. Sim, porque estes notáveis senhores também abundam nas mesmas ideias. O Senhor Henrique Galvão, por motivo da proposta de lei da organização hospitalar, em 24 de Janeiro de 1946, disse o seguinte na Assembleia Nacional: «Mas não terá paralelo o que se passa com os pretos, os seus feitiços e feiticeiros, com o que se passa com os aldeãos de muitas das nossas aldeias e povoados, perdidos em reconcavos da serra e cantos frios sem civilização? Não haverá entre nós também uma população que, pelas dificuldades com que luta, pela ignorância, pelo recurso tradicional à bruxa, pela distancia, etc., vive e morre sem assistência medica e que só se tratará se o hospital for ao seu encontro?» A comparação é evidente e acertada, e a forma interrogativa da frase não ilude ninguém: o orador punha ao nível dos cafres as baixas superstições, crendices e ignorância de certas populações rurais portuguesas. O Senhor Presidente do Ministério, que parece ter por nós todos o mais absoluto desprezo, não declarou no seu último discurso que a desliberdade que nos impõe é proporcional à incultura em que jazemos? O Armindo Rodrigues viu perfeitamente o caso (vê lá no que te metes…) e já estabeleceu o paralelo entre dois homens e as duas situações. E cabe-me agora protestar contra a desigualdade de tratamento que se dá a um e a outro.

O mais patusco guardo-o para o fim. Aquela referência aos cafres nem sequer é minha, ó cavalheiros. É um plagio desavergonhado, sabem de quem: do padre António Vieira, o grande orador jesuíta do século XVII! Vejam o grande escândalo: os homens da Oposição a fazerem causa comum com os jesuítas ! Já vão ver porquê. Como todas as pessoas cultas sabem, o padre António Vieira, que foi um grande lutador de nobre ideais, tomou a defesa dos cristãos-novos, que desejava ver reintegrados na vida nacional por uma politica de tolerância e de inteligência, que soubesse aproveitar em beneficio do País o seu trabalho, as suas iniciativas e as suas riquezas. Nos países cultos da Europa que visitou, viu-os considerados e felizes; e quando ouvia o apodo de cafres da Europa, com que por lá nos mimoseavam, e que se dirigia não ao povo mas às instituições retrógradas que o cafrealizavam, não podia deixar de reconhecer o bem fundado da metáfora. Um dia, a propósito de uma superstição grosseira, uma venda de relíquias, que comentava ironicamente, escreveu ao seu amigo Duarte Ribeiro de Macedo:
«Assim resgatávamos antigamente o ouro na Cafraria, e imos qualificando o nome, que não sem razão nos chamam, de cafres da Europa».
Moral do caso e sem largos comentários: se o padre António Vieira fosse hoje vivo, iria malhar com os ossos ao Aljube, pelo mesmo «crime» que eu cometi, arrimado a ele na citação da frase. Aliás, por esse e outros «crimes», também teve de prestar contas à Inquisição. E vejam o paralelismo flagrante de tudo isto: no século XVII a oposição era formada pelos cristãos-novos; hoje, a oposição, muito mais numerosa, quase todo o País, constituimo-la nós, e contra ambos se moveu e move o mesmo aparelho repressivo. Já é um bem que não tenhamos a fogueira e o espectáculo medonho dos autos-de-fé.

Ora aqui têm os cavalheiros a explicação da frase que tantos engulhos causou nos arraiais da Situação. Não lhes levo nada pela lição, embora não esteja disposto, depois de me terem demitido da Universidade sem me pagarem o que me deviam, a exercer o magistério gratuitamente. Também, era melhor …

a) Manuel Rodrigues Lapa

Em Legítima Defesa, in Depoimentos, 2ª série, Campanha Eleitoral da Oposição, edição dos Serviços Centrais da Candidatura [de Norton de Matos], Lisboa, 1949, p.10-15