sexta-feira, dezembro 31, 2010

Adeus 2010 .... Bem-vindo 2011




Despeço-me de 2010 com esta excelente análise político-financeira do Jorge Bateira, que bem merece ser lida e reflectida no Blog Ladrões de Bicicletas.
Feliz 2011 !!!

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Na morte da escultora Maria Barreira (1914-2010)

Maria Barreira (1914-2010)


Vítima de insuficiência respiratória, faleceu ontem, dia 23 de Dezembro, no Hospital de Santa Maria, a escultora Maria Barreira, viúva do também escultor Vasco da Conceição, desaparecido em 1992. Fizera há dias 96 anos. O funeral realizou-se hoje, para o cemitério do Bombarral, terra da naturalidade do marido e onde existe um Museu que reúne parte da obra de ambos.




«Desfrutando de um Livro», bronze, 1966

Deixo aqui uma das suas raras entrevistas, em 2005, ao jornal Gazeta das Caldas.




Escultora Maria Barreira em conversa no Museu do Bombarral

Aos 88 anos é com grande simplicidade e humor que a escultora Maria Barreira fala sobre o seu trabalho artístico, a sua ligação ao ensino, ou sobre a arte contemporânea.

Esta artista e o seu marido, o também escultor e bombarralense Vasco Pereira da Conceição, doaram em 1990 o seu espólio ao Museu Municipal do Bombarral que, em sua homenagem, tomou também os seus nomes.

Maria Barreira tentou estudar medicina, mas depressa se apercebeu que o seu destino eram as artes. Ainda menina, recorda que não havia brinquedos e por isso, para se distrair, já desenhava e recortava os seus próprios bonecos. Desistiu então de ser médica e em 1937 ingressou no curso de pintura na Escola de Belas-Artes. Mas logo no primeiro ano, influenciada pelas aulas de modulação, transitou para a escultura. "O meu desenho era mais linear e adaptava-se melhor à escultura e, na verdade, o que eu sempre gostei mais foi de modelar", explicou a autora que casou em 1948 com o escultor bombarralense, Vasco Pereira da Conceição.

Actualmente Maria Barreira dedica-se apenas ao desenho, mas é com grande simplicidade que conta como era o seu método de trabalho, as exposições em que participou, as obras efectuadas em conjunto com o seu marido, entre outras curiosidades como o facto do casal, quando foi viver para Lisboa, ter iniciado o seu trabalho no Atelier da Rua da Alegria, onde trabalhou o pintor caldense José Malhoa que, segundo recorda a escultora, era um óptimo espaço de trabalho, virado a Norte e com zona envidraçada. "Depois tivémos que sair pois foi vendido a um stand de automóveis". O casal passou então a prosseguir o seu trabalho artístico em "barracões" cedidos pela autarquia, que eram sempre provisórios. "Já se sabe que com as Câmaras, primeiro estão os interesses gerais, depois os pessoais e nisto a arte fica sempre de lado".

Em 1951 a escultora diploma-se em Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras de Lisboa. A sua dedicação ao ensino passou pela consciencialização "de que não podia viver só da escultura" e, como tal, foi professora provisória na Escola Marquês de Pombal. Quando se candidatou ao estágio para professora efectiva, o pedido foi-lhe indeferido por causa de pertencer ao MUD (Movimento de Unidade Democrática) e à Associação Feminina Portuguesa para a Paz. Foi pelas mesmas razões que se viu afastada do ensino, nos anos 50 e 60, sendo só readmitida em 1967 quando houve uma certa abertura do regime político da época. Dar aulas "não é algo que se escolha, mas dada a impossibilidade de me manter só com a escultura, comecei a dar aulas de desenho".

Nos anos 50 leccionou também no curso nocturno na Sociedade Nacional de Belas Artes, actividade de que gostava pois apesar das pessoas não terem grandes conhecimentos artísticos "estavam muito interessadas em aprender". Já nos anos 70 conseguiu o estágio para professora efectiva e foi, posteriormente, convidada a fazer parte da experiência pedagógica associada à reforma do ensino de Veiga Simão, na altura ministro da Educação. Diz que foi uma experiência muito rica, "mas também um pouco utópica pois precisava de muito dinheiro para se concretizar". Em 1981 a escultora-professora reformou-se do ensino, mas prosseguiu a sua vida artística.

Permanente elogio à Mulher

Como principal tema das obras de Maria Barreira , destaca-se a figura feminina pois "sempre fui muito defensora da mulher nas várias fases da sua vida". Segundo afirma Ana Margarida Martins no catálogo da autora, "a escolha da mulher como objecto fundamental do seu trabalho plástico é, de alguma forma intencional já que Maria Barreira sempre foi uma defensora convicta dos direitos da Mulher, preocupação aliás que se espelha em tudo o que produziu desde a escultura ao desenho, até à cerâmica e à medalhística, passando pela ilustração".

Nas suas obras surgem mulheres frágeis, alongadas, serenas ou sensuais e, muitas vezes, destaca-se o papel da mãe. Segundo Ana Margarida Martins, as maternidades eram tema recorrente na produção artística dos anos 50 e 60, no entanto, "de forma mais subtil, as maternidades de Maria Barreira podem, além disto, constituir uma forma de materialização de um desejo íntimo não consumado".

Há uma série que dedicou às mulheres da Nazaré e que conta, que quando visitou esta localidade piscatória, ficou muito chocada "com a vida dura das mulheres daquela altura, bem como a forma fechada de ser daquelas pessoas". Por isso, decidiu prestar-lhes homenagem em obras como "Mulher da Nazaré" (1959) "Mulher da Praia" (1965) ou "Três Mulheres na Praia" (1966).

Para José Augusto França, Maria Barreira é considerada uma escultora pertencente à "terceira geração" pela sua frequência fiel das Exposições Gerais de Artes Plásticas, da Sociedade Nacional de Belas Artes, "atendendo ao papel desejado para a actividade escultórica que deveria desempenhar no sentido da sua actualização quer de forma, quer de conceitos". Segundo ainda o seu catálogo, dessa geração fazem parte outros escultores mais jovens como José Aurélio, Helder Batista, João Cutileiro, Manuela Madureira, Lagoa Henriques ou Fernando Fernandes.

Estas exposições da SNBA, que surgiram por oposição à política cultural de então - que tomava forma nas exposições do SNI (Secretariado Nacional de Informação). Realizaram-se entre 1946 e 1956 e Maria Barreira não só expunha as suas obras mas também colaborava na sua concepção e realização.

Em 1958, Maria Barreira parte com Vasco da Conceição, Celestino Alves e João Navarro Hogan, para Paris. Seis meses na capital francesa permitiram-lhe o contacto directo com as artes plásticas e, no ano seguinte, apesar de não ter sido bolseira participa na exposição "Dois pintores dois escultores na SNBA" e também na Biblioteca-Museu de Vila Franca de Xira.

"No barro fica sempre marcada a dedada do escultor"

De entre os vários materiais que trabalhava nas suas esculturas, entre a pedra, os metais e o barro, Maria Barreira destaca este último pois trata-se de "um material muito nobre que fica com a forma original, ou seja, logo em definitivo e nele é possível ver-se a dedada de um escultor". Já na escultura em metal ou pedra, as peças ainda têm que ir à fundição ou ao canteiro e nesses casos "se a fundição for bem feita, a peça já vem mais ou menos enquanto que, no caso, do canteiro é sempre preciso retocar".

Sobre a questão se o casal se influenciava mutuamente, Maria Barreira explica que "há sempre algumas influências, às vezes, trocávamos impressões e chegámos a participar juntos em alguns concursos para esculturas para as ex-colónias". Mas no trabalho individual comenta que tentavam não se influenciar mutuamente.

Maria Barreira refere-se a Maillol, Henri Laurens e Henri Moore como os escultores estrangeiros que mais a inspiraram e, entre autores lusos, mencionou apenas Francisco Franco, cujo trabalho considera "ter interesse". Pela obra dos seus professores "não tinha assim particular admiração" como Leopoldo de Almeida ou Simões de Almeida Sobrinho.

Sobre a escultura contemporânea, afirma que aceita a vertente abstracta e aprecia, sobretudo, as composições de objectos. Pronta a contactar com as novas correntes, não concorda, contudo, com algumas vertentes dos últimos tempos. Por exemplo, aquelas esculturas, que mais não são do que "blocos de pedra disseminados pela terra, sem grande trabalho nem imaginação, não me interessam".

Peças da escultora atraem crianças

Foi durante a "Conversa sobre escultura", realizada em Julho, na Feira do Livro do Bombarral que Maria Barreira soube que as suas peças atraíam os mais novos. Segundo uma professora presente no evento, que faz visitas frequentes ao museu, com os seus pequenos alunos, dos três aos seis anos, contou à escultora que as suas crianças "têm uma grande empatia e sentem necessidade de tocar nas suas obras". Mencionou que, provavelmente, deve-se ao aspecto maternal de muitas das suas peças. Maria Barreira revelou-se surpresa e muito satisfeita de assim ser, até porque "um museu parado não tem qualquer interesse para as pessoas e torna-se num espaço sem grande valor".

Ainda no decorrer desta conferência, ficou estabelecido que a escultora iria ceder alguns dos instrumentos de trabalho dos dois escultores – "muitas outras foram dadas aos meus colegas" – com destino à recriação de um espaço de um mini-atelier, para a mostrar ao público um pouco do ambiente de trabalho dos dois escultores. Dele poderão fazer parte formas de medalhas, os teks de madeira, caveletes e ferramentas. Presente estava o presidente da Câmara, Albuquerque Álvaro, que logo se comprometeu a preparar esta nova área do espaço museológico do Bombarral.

Natacha Narciso
GAZETA DAS CALDAS, 2005

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Feliz Natal para todos


NATAL

É um tempo de cristal.
E rosas rubras.

Com asas de topázio
e de verbena
onde a memória se descura.

E a infância retorna
fio e seda, a misturar
o sonho com a lua.

É um tempo de ideais
E de lonjura.

De afectos dobados
na clave do peito.
Enquanto no coração

Se insinua
um júbilo maior
de amor perfeito.


Maria Teresa Horta

20 de Dezembro 2010




segunda-feira, dezembro 06, 2010

Obrigada, Cecília!

Alice Jorge, gravura



SAUDOSA SAUDADE DO MAR


Que ilusão tão iludida nos envolve

Que amor de amar nos desperta

Que saudade saudosa do mar

Se espraia em nossos corpos tão sólidos



Que vagas sacodem as areias

Que escorrem pelos seios até se dar

Que danos dados se encobrem

Nestas mãos vazias de códigos

Que só os beijos aquecem

Nesta esperançada esperança de amar



Seria um poema a dois

Seria um confundir de ilusões

Seria a força do amor

Seria a saudade do mar



Nesta ânsia tão ansiada

Neste sentir tão sentido

Será o monólogo dorido

De um só beijo ferido



Por esta esperança cansada de esperar

Por esta saudosa saudade de amar



Cecília Melo e Castro
nota: poema oferecido pelo meu aniversário, pela minha amiga Cecília Melo e Castro

quarta-feira, dezembro 01, 2010

No dia dos meus anos...



JÚLIA

para a Júlia Coutinho


Teces a amizade
com o manso
fio da ternura

E laços
de inventares
a dares nós

De seda pura

Com o gosto
de recriares
os outros

Com teu engenho

A conseguires
inventar
o sonho

Com o luar cheio

Maria Teresa Horta


PS: um grande xi-coração, Teresa!

quinta-feira, novembro 04, 2010

Fernando Piteira Santos: Justa Homenagem


Parabéns à Maria Antónia Fiadeiro por não deixar apagar a Memória e trazer à ribalta um livro que dá voz a uma figura marcante de uma geração heróica e que tem de ser lembrada para sempre.
A apresentação do livro será feita pelo professor António Borges Coelho, outra personalidade marcante do seu tempo e que faz de nós uns privilegiados por ainda o termos activo entre nós.
Eu lá estarei!

domingo, outubro 24, 2010

e isso aí...

POEMA DE AGRADECIMENTO À CORJA

Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem.
Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.

Joaquim Pessoa

sábado, outubro 23, 2010

Parabéns, meu amigo!

(Martins Guerreiro, na ex-Bicaense, por volta de 1978/79)

Fez 70 anos no passado dia 11 de Outubro. Hoje vai ser homenageado pelos seus camaradas da Marinha, pela Associação 25 de Abril e por todos os seus Amigos, entre os quais me incluo. Será no restaurante da FIL (Junqueira) a partir das 13 horas.
Longa vida ao almirante Martins Guerreiro e muita força para escrever as Memórias do PREC de que foi protagonista activo e conhece como ninguém.
Trata-se de um compromisso com a História Portuguesa!
TODOS lhe devemos MUITO.


segunda-feira, setembro 27, 2010

Sérgio Valente: um fotógrafo na oposição



Na próxima 5ª feira, dia 30 de Setembro, pelas 18h30, na FNAC do Chiado.
Lançamento do livro Um Fotógrafo na Oposição, de Sérgio Valente.
Apresentação a cargo de Manuel Carvalho da Silva (CGTP) e de Manuel Loff (Historiador)



domingo, junho 27, 2010

Carlos Pato: Resgatado do silêncio

Decorreu no sábado, dia 26 de Junho, uma sessão de homenagem a Carlos Pato (1920-1950) promovida pelo Partido Comunista Português, o seu partido de sempre.

A cerimónia realizou-se no salão do Clube Vilafranquense, na Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, numa sala a abarrotar de amigos, camaradas e familiares com especial destaque para os filhos, Maria Clara e João Carlos, genro, nora, e os netos, Rita, Gonçalo e Nuno.

Presentes ainda dois amigos especiais: a Luisa Duarte Santos que o viu pela última vez com vida em Caxias e seu marido Arquimedes da Silva Santos que com Carlos Pato esteve na génese do Movimento Neorealista e que também se encontrava preso na mesma ocasião. (ver relatos abaixo)


Pela voz de Armindo Miranda, responsável do PCP, foram lembrados os tempos duros e repressivos dos anos trinta e quarenta do século passado com a Guerra Civil de Espanha, a Segunda Grande Guerra, as lutas operárias ribeirinhas que envolveram homens como Soeiro Pereira Gomes e Alfredo Dinis - Alex (igualmente morto pela PIDE), a emergência do Movimento Neorealista de V F Xira, a relativa abertura do regime com o final da II Guerra que permitiu criar o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e o MUD Juvenil, e a unidade oposicionista em torno da candidatura do General Norton de Matos em Janeiro de 1949.
Carlos Pato, que desde cedo se envolveu nas lutas político-sociais e culturais do seu tempo, bem como em todas as movimentações oposicionistas do após-guerra, para além de ser dirigente local do PCP pertenceu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD), à Comissão Eleitoral da candidatura de Norton de Matos e à direcção do Ginásio Artístico Vilafranquense, tendo exercido o cargo de presidente desde 1945 até ser preso em 1949.

No final houve uma romagem ao cemitério de Vila Franca de Xira no qual se incorporaram grande parte dos presentes.

Muitos cravos vermelhos para Carlos Pato. Cravos vermelhos aos molhos para um homem generoso e solidário que a repressão de Salazar e da PIDE não deixaram que pudesse viver para criar os filhos, conhecer os netos e chegar à Libertação do 25 de Abril!

A homenagem, convenhamos, pecou por tardia. É que, no entretanto, passaram 36 anos sobre a Revolução de Abril... Mas, como diz o povo: «mais vale tarde que nunca».

Fez-se justiça.


sábado, junho 26, 2010

Hoje, homenagem pública a Carlos Pato


15H00 - Clube Vilafranquense - Vila Franca de Xira
16H00 - Romagem ao cemitério


Faz hoje 60 anos que morreste em Caxias torturado pela PIDE.

Foi com Homens como tu que se construíu o 25 de Abril.
Foi com Homens como tu que hoje temos Liberdade.

Obrigada, Carlos Pato!

Palavras de Alves Redol no 1º aniversário da tua morte:

«Quiseram os teus amigos mais íntimos que palavras minhas acompanhassem a publicação de alguns contos que escreveste. E nunca a nossa maravilhosa língua, a língua do povo que tanto amavas, e por quem deste tudo o que de mais precioso tinhas para legar, a mesma com que os teus filhos hão-de contar de ti aquilo que mereces, nunca a nossa maravilhosa língua se tornou tão incapaz para exprimir aquilo que era preciso dizer-se neste primeiro aniversário da tua morte.

Vejo-te ainda... Vejo-te sempre!

Compreensivo e digno, amoroso e forte, aberto às melhores promessas dos nossos dias, sensível à dor alheia, rebelde para as injustiças, e bom, sempre bom, com esse sorriso tão suave que era a imagem de ti próprio, que era o reflexo dum coração onde não cabia o ódio nem a cobardia...

Vieste com a mesma simplicidade dos camponeses que idolatravas, dos camponeses que eram carne da tua carne, e de quem herdaste essa calma interior, e essa espantosa força interior, que faz de cada um deles um herói sem nome – e que faz de todos eles a grande certeza, onde se alicerçou a independência nacional, e donde surgirá a pátria livre que ambicionavas para todos nós. Nem esse maravilhoso heroísmo te faltou – o dos sacrifícios anónimos e dos sonhos guardados mas nunca esquecidos, que tu, mais do que eles ainda, quiseste tornar vida.

Vejo-te ainda... E sempre!

Como um desses homens que traz o futuro no coração, e para quem o futuro não é essa coisa mesquinha do egoísmo individual – do meu ou mesmo do nosso – mas essa seara sublime de espigas sem dono que o mundo todo guardará para si...

Como um desses homens que não mede a vida da humanidade pela sua vida, e que se lhe exigem a sua, para que a outra seja mais digna de ser vivida, a oferece sem hesitações, alheio a recompensas...

Como um desses homens a quem o cientista deve o seu laboratório, o artista a sua obra, o escritor os seus livros, as mães o direito de criarem os filhos nos seus braços e de os entregarem, só depois, puros, belos e dinâmicos para as tarefas da paz...

Como um desses homens para quem os poetas escreveram os seus poemas...

Um José Gomes Ferreira:

Volta-te e olha para a terra
a carne da tua sombra
de flores acesa
Céu para quê?
O céu é para os que esperam
E tu morreste por uma certeza!

Ou um Carlos de Oliveira:

Mais vivo porque sofreste
A morte não veio, foi-se
A eternidade constrói-se
Na beleza com que viveste.


Ou ainda num epitáfio de Sidónio Muralha que mereces na tua campa:

Largos versos irrompem do teu silêncio de granito
E tu vives inteiro em cada grito
Tu que foste maior que todas as poesias.


Foi para homens como tu que estes versos se cantaram. Que o não duvide ninguém!...

Porque só quem viu uma população inteira a pedir, para si, o teu corpo, a caminhar, em silêncio, de braços agarrados numa muralha de dor, que também era esperança, entre lágrimas espontâneas, como se todos, até mesmo as crianças, fossem acompanhar um filho, poderá entender o que tu eras para todos nós...

Só quem viu mulheres e meninos do povo levarem-te raminhos de flores silvestres, numa homenagem que nunca conheci igual, e os teus amigos, e os teus companheiros de trabalho, e uma população inteira, todos sofrendo essa separação, numa angústia que estava mais no nosso sangue do que nos rostos torturados por esses golpe, é que saberá compreender e testemunhar que chorámos um Homem. Um Homem de que nos cumpre honrar o exemplo de dignidade e a lição de coerência.

Daí o sentir frustradas as palavras que te dedico, porque elas são incapazes de exprimir o que tu mereces e o que te devo...

- Devo-te muito do que há-de ser o futuro do meu filho; devemos-te todos, mesmo os que te quiseram mal, alguma coisa da felicidade que virá para os filhos de cada um... E por isso te chorámos, e por isso te lembraremos sempre, mais ainda nas horas de alegria do que nos momentos de amargura.»

Alves Redol

quinta-feira, junho 24, 2010

Homenagem a Carlos Pato (2)

A FORÇA IGNORADA DAS COMPANHEIRAS QUE FICARAM NA SOMBRA, foi uma série de testemunhos recolhidos por Gina de Freitas para o jornal Diário de Lisboa logo após o 25 de Abril e que vieram a ser reunidos mais tarde, quase todos, em livro.

A 25 de Setembro de 1974 publicaram a entrevista com Maria Rodrigues Pato, a mãe de Carlos Pato, que iria fazer 74 anos em Outubro desse ano.
A jornalista traça-lhe o perfil: «tem o olhar apagado, a voz sumida, cansada, que de vez em quando se parte num soluço mal contido. Foram trinta anos de sofrimento, de luta e de sobressaltos.»
Transcrevemos:

«Isto começou tudo mais ou menos há 30 anos, minha senhora. O meu primeiro filho a ser preso foi o Carlos [Carlos Alberto Rodrigues Pato]. De uma vez esteve lá 90 dias e a seguir mais 13 meses e nunca foi julgado. O advogado dizia-me que não tinha matéria para ser julgado. Mas conservavam-no. Sofreu muito, muito, muito. Teve muitas torturas. A primeira vez que o vi contou-me que o tinham torturado muito, mas havia coisas que só me queria dizer quando saisse. Mas como nunca mais saíu... Morreu lá em Caxias, na Sala 7 do rés-do-chão, onde estavam mais 14 presos com ele. Foi das torturas que ele morreu. Torturas que incluiram mais de 130 horas de "estátua" (...) Aliás, a violência começou logo no momento em que tentaram pela primeira vez prender Carlos Pato: de madrugada, como é costume, invadiram a casa, entraram nos quartos e destaparam as pessoas que se encontravam na cama, incluindo a mulher grávida de cinco meses. O chefe da façanha foi o inspector Jorge Ferreira.»
 (...)
«O telegrama chegou a Vila Franca de Xira com a notícia da morte de Carlos Pato (...) Ela (mulher) coitadinha ficou doida e fomos as duas para Caxias. Quando lá chegámos o director disse: "não façam barulho, que eu não quero aqui barulho, senão as senhoras não entram". O meu filho já estava deitado, já o tinham vestido... (...) nós ficámos lá a tarde toda e de meia em meia hora vinha um dos presos que estava com ele, sentava-se um de cada lado e nós perguntavamos sempre o que tinha acontecido. Que tinha começado a queixar-se de um braço, depois de uma perna, que tinha também muita falta de ar e que eles punham-no junto da janela de grades, mas a sentinela da rua não o deixava lá estar. Bateram na porta, bateram para cima, mas ninguém acudia. Também os guardas não queriam barulho, porque não estava lá o senhor director que tinha vindo para Lisboa. Diz que estava tudo em alvoroço pois como podiam iam contando aos outros presos o que se passava.»
Carlos Pato acabou por morrer, em sofrimento atroz, sem qualquer assistência médica, pelas 6,30 horas do dia 26 de Junho de 1950.
Aqui fica o documento para Memória Futura.








quarta-feira, junho 23, 2010

Homenagem a Carlos Pato (1)

Há dois anos evocámos aqui Carlos Pato, esse jovem de 29 anos que morreu cruelmente nos calabouços de Caxias, pelas 6,30 da madrugada do dia 26 de Junho de 1950, depois de brutalmente torturado pela PIDE e sem que lhe fosse prestada qualquer assistência médica.

A partir daí muitos desenvolvimentos se deram e eu pude ter noticias e contactar os filhos e netos de CP a quem muito agradeço o carinho manifestado e as informações fornecidas.

Quando perfazem 60 anos sobre esta tragédia que deixou orfãos de pai uma bébé de 20 meses (Maria Clara) e outro de apenas 5 (João Carlos), Carlos Pato vai ser finalmente homenageado pelo PCP, partido de que foi activo militante.

A homenagem terá lugar no próximo sábado, dia 26 de Junho, pelas 15h, no Clube Vilafranquense, colectividade em VF Xira a cuja direcção pertencia quando o prenderam em 28 de Maio de 1949. Haverá romangem ao cemitério local pelas 16 h.

Toda a Família Pato foi vítima de perseguição por Salazar. O irmão Octávio estava na clandestinidade quando Carlos morreu. Antes, haviam passado pelas prisões políticas um outro irmão, o Abel, e um primo, o Carlos, que de tão maltratado viria a falecer pouco depois. Maria Rodrigues Pato, sua mãe, foi uma vítima daqueles tempos sombrios: criou os netos (filhos do Octávio e de Carlos) e passou a vida a brigar com a polícia política para poder prestar apoio aos filhos, netos e nora, entretanto presos. Foram 30 anos a caminhar para os calabouços da PIDE.

Publicada em Agosto de 74 no Diário de Lisboa, a Carta Aberta a Octávio Pato foi escrita por António Guerra, um velho resistente antifascista de Vila Franca de Xira, entretanto falecido, e que até morrer tudo fez para manter viva a memória do seu amigo e camarada Carlos Pato.

Porque a consideramos um documento de extrema importância para se avaliar da dimensão desses tempos sombrios, aqui a deixamos para Memória Futura.












sábado, junho 19, 2010

Até sempre, Saramago!

José Saramago, 1922-2010


Retrato do poeta quando jovem


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


(In Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

quarta-feira, junho 09, 2010

Homenagem a Vasco Gonçalves

General Vasco Gonçalves (1922-2005)




passo a divulgar o comunicado da Associação 25 de Abril



Foi há cinco anos que o Militar de Abril e Sócio de Honra da Associação 25 de Abril, primeiro-ministro de quatro Governos Provisórios, Vasco Gonçalves, nos deixou.

Um grupo de amigos criou uma comissão destinada a promover algumas iniciativas evocativas.

A Associação 25 de Abril apoia essas iniciativas e convida-vos para a primeira delas, uma Romagem à sua campa, no próximo dia 11 de Maio, 6ª feira, às 11h00, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

Cordiais saudações

Vasco Lourenço




COMISSÃO PROMOTORA

Maria João Gonçalves

Vítor Gonçalves

Vasco Gonçalves Laranjeira

António Avelãs Nunes

António Marques Júnior

Carlos Coutinho

Carlos Cruz Oliveira

Carlos do Carmo

Herbert Goulart

João Corregedor da Fonseca

João Varela Gomes

José Barata Moura

José Casanova

José da Silva Pinto Ferreira

José Emílio da Silva

José Manuel Costa Neves

José Mendes Morais

José Tasso de Figueiredo

Luís Vicente da Silva

Manuel Barbosa Pereira

Manuel Duran Clemente

Manuel Martins Guerreiro

Manuel Sá Marques

Mário Júlio Simões Teles

Mário Ruivo

Mário Tomé

Miguel Urbano Rodrigues

Nuno Pinto Soares

Nuno Santos Silva

Pedro Pezarat Correia

Vasco Costa Santos

Vasco Lourenço





quarta-feira, abril 28, 2010

In Memoriam de José Maria Videira

Fiel aos princípios deste blogue e porque é importante resgatar a Memória dos que ficaram pelo caminho para que hoje possamos viver em Democracia e Liberdade, convido-vos a lerem «José Maria Videira, meu avô», por João Videira Santos.

Obrigada, Joao!

In Memoriam de Sofia Ferreira (1922-2010)

(1 Maio 1922 - 22 Abril 2010)

Conheci pessoalmente Sofia Ferreira em Fevereiro de 2001 quando acedeu a conversar comigo sobre Jose Dias Coelho, a experiência desse convívio na clandestinidade e, no geral, sobre os tempos sombrios que conheceu como ninguém. Fiquei deslumbrada com a sua doçura e humanidade. Nunca me regateou uma conversa mesmo sabendo que eu era uma ex-pcp. Muitos dos seus camaradas não conseguem ter essa abertura própria de almas superiores. Habituei-me a amá-la e respeitá-la. Guardo o livro de Giovanni Ricciardi sobre Soeiro Pereira Gomes que me ofereceu com a dedicatória: «Para a amiga Júlia como uma boa recordação da nossa conversa sobre a História do PCP e do camarada Dias Coelho». Foi com grande mágoa que a vi partir no passado dia 22 uns dias antes de completar 88 anos. Deixou-nos para sempre uma grande Mulher. Viva Sofia Ferreira!

Deixo-vos com um texto da jornalista São José Almeida inserido no Público de 24 de Abril.


A sua vida e a luta sobressaem como referências maiores de alguém que conhecia o sentido da justiça e da solidariedade

A última vez que falei com Sofia Ferreira foi em 2004, na sede do PCP na Rua Soeiro Pereira Gomes, em Lisboa. O motivo foi um trabalho que realizei então sobre um conjunto de cartas escritas por algumas das mulheres que estavam presas na cela das mulheres em Caxias, em 1961. As cartas destinadas à publicação numa revista política internacional, mais não eram do que denúncias da violência exercida sobre os antifascistas nas cadeias da PIDE. E neste caso com a particularidade raríssima de serem denúncias escritas por mulheres.

Sofia Ferreira não assinava nenhuma dessas cartas, mas aceitou falar comigo assumindo-se como a dirigente do PCP que era à época, em conjunto com Maria Alda Nogueira, responsável pela célula do PCP na cadeia de Caxias. Esta conversa veio-me à memória, quando há uns dias me disseram que Sofia Ferreira estava mal, pois tinha sofrido um AVC. A notícia da sua morte veio dias depois, na quinta-feira.

Faleceu a poucos dias de completar 88 anos (nasceu a 10 de Maio de 1922) uma das mais importantes mulheres que se dedicaram à vida política em Portugal no século XX e uma das mais marcantes e importantes mulheres que conseguiram atingir o topo da hierarquia do centralismo democrático do PCP e integrar a sua direcção máxima, o comité central desde o V Congresso em 1957, no local da Galiza, na freguesia do Estoril, até ao XII Congresso, no Porto, em 1988.

A memória dessa conversa que mantivemos numa das salas do rés-do-chão da Soeiro (a primeira à esquerda, logo ao pé da escada) é a força do seu olhar, bem como a tranquilidade e a certeza que dela emanava de quem não duvida um minuto da bondade e da verdade das convicções pelas quais fez o sacrifício da sua vida dedicada aos outros. Nunca falando de si, tratou de certificar que as cartas eram verdadeiras e de contar a forma como a organização clandestina do PCP cumpriu esta tarefa política de denunciar o que se passava nas cadeias fascistas.

Nunca falou de si. E de pessoal durante toda a conversa só uma discreta pergunta, com um sorriso e alguma ternura nos olhos: "Foi você que fez a biografia da Maria Alda, não foi? Um dia havemos de falar..." E respondi que sim, que Maria Alda Nogueira tinha sido a minha primeira biografada, e ficámos de conversar um dia. A voragem da actualidade e a obsessão da notícia, mais as voltas da vida, acabaram por nunca possibilitar essa conversa.

Irmã de Mercedes Ferreira e de Georgete Ferreira, Sofia Ferreira, que é hoje em Portugal uma personalidade quase desconhecida e uma referência apenas para algumas gerações mais velhas, é uma das figuras que marcam o século XX português, pela sua capacidade de entrega e de abnegação em beneficio da comunidade, desde que em 1946 mergulhou na clandestinidade como militante do PCP. Valores que à luz dos dias de hoje parecem estranhos numa sociedade que cedeu ao individualismo e aos egoísmo mais cruel e desumano.

Sofia Ferreira foi uma das mulheres que mais anos de prisão cumpriu, mais de 13 anos nas cadeias da PIDE (de 25 de Março de 1949 a 4 de Fevereiro de 1953 e de 28 de Maio de 1959 a 6 de Agosto de 1968). Presa a primeira vez com Álvaro Cunhal e com Militão Ribeiro no Luso, é presa a segunda vez em conjunto com o seu marido, António Santo, na rua, em Lisboa. Em 1969, passa algum tempo na União Soviética e assume depois responsabilidades de topo na hierarquia do PCP, antes e depois do 25 de Abril.

A importância real de Sofia Ferreira no aparelho e na história do PCP é conhecida e faz parte da história de Portugal. Teve, de acordo com a sua biografia oficial, responsabilidades diversas e de peso ao longo de décadas. Da imprensa clandestina ao apoio ao secretariado, passando pela responsabilidade de várias organização regionais.

O momento da sua biografia política mais conhecido é o facto de ter sido presa com Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro na casa clandestina do Luso em 1949. Sobre a qual fez, aliás, um impressionante depoimento, logo após o 25 de Abril a Rose Nery Nobre de Melo que mostra como de facto Sofia Ferreira sabia exactamente o peso e a importância do seu percurso (Mulheres Portuguesas na Resistência, Seara Nova, 1975).

Senhora de uma segurança imensa, Sofia Ferreira tinha atrás de si a lenda de ter sido presa no Luso com Cunhal e Militão, onde era a companheira da casa clandestina. Era olhada por muitos como uma das namoradas de Cunhal. Mas o seu prestígio e a sua autoridade vinham do que foi o seu percurso e a sua magnífica capacidade de entrega.

Estranhamente ou não, esta mulher discreta e dura, mas afável, era mencionada muitas vezes como a "terrível Sofia". Uma forma de tratamento curiosa, que não era exclusivo seu - havia também a "terrível Alda" e a "terrível Georgete", por exemplo. O que diz muito sobre o PCP, mas sobretudo sobre o Portugal, quer de antes, quer depois do 25 de Abril. O país machista, em que a autoridade de uma mulher não é vista com respeito e por mérito próprio, mas sim como algo que é fruto de um carácter diferente do que é ser mulher, como algo antinatural numa mulher, logo terrível.

Sofia Ferreira foi das poucas mulheres a mostrarem o que era capacidade de luta, de liderança, de sacrifício em nome dos outros, da política e de um projecto. Foi das poucas mulheres na sua época e da sua geração a mostrarem que as mulheres podem ser iguais aos homens. E nesse sentido também uma pioneira. E, por mais que nos distanciemos do seu projecto e o recusemos, não podemos rejeitar o mérito e a grandeza de uma mulher que dedicou a sua vida à luta em que acreditava e sobre a qual estava convencida de que com ela melhoraria a condição dos seres humanos e lhes daria dignidade.

Num país retrógrado e conservador como Portugal em que ainda hoje as mulheres - mesmo trabalhando ao lado do homem ou mais que este e recebendo menos -, são consideradas em função do que é o espaço do lar e o espaço da família, a vida e a luta de Sofia Ferreira sobressaem como referências maiores de alguém que conhecia o sentido da justiça e da solidariedade.

Obrigada Sofia Ferreira por tudo o que deu sempre aos outros e por eles. E desculpe ter-me deixado atropelar pela voragem dos dias e nunca termos tido a oportunidade de ter aquela conversa. Jornalista (
sao.jose.almeida@publico.pt)


http://www.pcp.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=35682

segunda-feira, abril 19, 2010

25 de ABRIL

"25 de Abril", desenho de Manuel San Payo



VINTE E CINCO DE ABRIL

Onde era o negrume
surgiu o fogo a luz
o luzeiro no peito em sobressalto

Madrugada de esperança
a derrotar o medo
vinte e cinco de abril

Entre o canto e o verso
a tecer com o sonho
a liberdade


Maria Teresa Horta

Lisboa, 15 de Abril de 2010


Nota: Poema inédito, feito para este blogue. A minha gratidão à querida Teresa.

domingo, abril 18, 2010

Jantar comemorativo do 25 de Abril



Será na próxima sexta-feira, dia 23 de Abril, pelas 19H30, na antiga FIL (Junqueira).

Inscrevam-se e venham festejar Abril !!!

Aqui ficam os meus contactos: 91 454 89 86 ou juliacoutinho@gmail.com


Se tiverem dificuldade em visualizar o cartaz acedam a: http://www.emabrilesperancasmil.blogspot.com/














quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Há princípios e valores...

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DO QUE UM HOMEM É CAPAZ
AS COISAS QUE ELE FAZ
PARA CHEGAR AONDE QUER

É CAPAZ DE DAR A VIDA
PARA LEVAR DE VENCIDA
UMA RAZÃO DE VIVER

A VIDA É COMO UMA ESTRADA
QUE VAI SENDO TRAÇADA
SEM NUNCA ARREPIAR CAMINHO

E QUEM PENSA ESTAR PARADO
VAI NO SENTIDO ERRADO
A CAMINHAR SÓZINHO

VEJO GENTE CUJA VIDA
VAI SENDO CONSUMIDA
POR MIRAGENS DE PODER

AGARRADOS A ALGUNS OSSOS
NO MEIO DOS DESTROÇOS
DO QUE NUNCA HÃO-DE FAZER

VÃO POLUINDO O PERCURSO
COM AS SOBRAS DO DISCURSO
QUE LHES SERVIU PARA ABRIR CAMINHO

À CUSTA DAS NOSSAS UTOPIAS
USURPAM REGALIAS
PARA CONSUMIR SÓZINHO

COM POLITICAS CONCRETAS
IMPÕEM ESSAS METAS
QUE NOS ENTRAM CASA DENTRO

COMO A TRILATERAL
COMO A TRETA LIBERAL
E AS VIRTUDES DO CENTRO

NO LUGAR DA CONSCIÊNCIA
A LEI DA CONCORRÊNCIA
PISANDO TUDO PELO CAMINHO

PARA CASTRAR A JUVENTUDE
MASCARAM DE VIRTUDE
O QUERER VENCER SÓZINHO

FICAM CINICOS, BRUTAIS
DESCENDO CADA VEZ MAIS
PARA SUBIR CADA VEZ MENOS

QUANTO MAIS O MAL SE EXPANDE
MAIS ACHAM QUE SER GRANDE
É LIXAR OS MAIS PEQUENOS

QUEM ESCOLHE SER ASSIM,
QUANDO CHEGAR AO FIM
VAI VER QUE ERROU O SEU CAMINHO

QUANDO A VIDA É HIPOTECADA
NO FIM NÃO SOBRA NADA
E ACABA-SE SÓZINHO

MESMO SENDO OS PODEROSOS
TÃO FRACOS E GULOSOS
QUE PRECISAM DO PODER

MESMO HAVENDO TANTA GENTE
PARA QUEM É INDIFERENTE
PASSAR A VIDA A MORRER

HÁ PRINCIPIOS E VALORES
HÁ SONHOS E HÁ AMORES
QUE SEMPRE IRÃO ABRIR CAMINHO

E QUEM VIVER ABRAÇADO
À VIDA QUE HÁ AO LADO
NÃO VAI MORRER SÓZINHO



domingo, fevereiro 14, 2010

Autobiografia de Rosa Lobato de Faria

Rosa Lobato Faria, morreu, dia 2 de Fevereiro de 2010, aos 77 anos.
Deixamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL há dois anos.


Autobiografia.

Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual, política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos melodias nunca aprendidas.

Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom. Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.

E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.

Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como as necessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura, história universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te, menina, que vais ser escritora.

Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas, vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele molhávamos os pés e as almas.

Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves. Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).

Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.

Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho, erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descoberta até, praticamente, ao infinito.

Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê, pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurasse como acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).

Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.

Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.

Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.

Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.
Encontramo-nos no meu próximo romance.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Decisão Histórica na AML

A causa dos Animais está de parabéns! Hoje, fez-se História!

Os partidos com assento na Assembleia Municipal de Lisboa aprovaram, por maioria e sem nenhum voto contra, todas as propostas do Grupo de Lisboa relativas à implementação da Campanha de Esterilização na cidade e também a suspensão das capturas dos gatos das colónias da cidade pelo Canil até à entrada em funcionamento do novo gatil.

A Assembleia Municipal de Lisboa tomou hoje uma decisão inovadora e decisiva que vai alterar a triste história da protecção dos direitos dos animais em Lisboa, tornando-se num exemplo para todo o país. O nosso aplauso e a nossa gratidão.


Eu estive lá.


Acompanhem aqui:

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Na morte de Rosa Lobato de Faria (1923-2010)


Se eu morrer de manhã
Abre a janela devagar
E olha com rigor o dia que não tenho

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
Ter tido a noite é mais do que mereço
Se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
E um pedaço de céu
O único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
Que não saber voar
Foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que não tenho
E do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
Pois não estar é da morte quanto sei.

Rosa Lobato de Faria
(20.4.1932 - 2.2.2010)

segunda-feira, janeiro 25, 2010

Antonio Lopes de Almeida: a coragem e o medo

Antonio Lopes de Almeida, Maria da Piedade (mulher) e Suzete (filha)


No início do ano passado homenageei aqui António Lopes de Almeida, assassinado pela PIDE, no Aljube, em 1949. Na altura baseei-me nos arquivos da PIDE/DGS e nos jornais da época. Só mais tarde tomei conhecimento de um livro de 2008, - Mulheres da Marinha Grande, histórias de luta e de coragem -, da autoria de Júlia Guarda Ribeiro, com uma excelente recolha de testemunhos, entre os quais o de Maria da Piedade Almeida, viúva daquele malogrado operário vidreiro da Marinha Grande.
É esse testemunho que vos deixo aqui, nos 61 anos da morte de António Lopes de Almeida.



É com lágrimas na voz, pois as lágrimas dos olhos já secaram há muitos anos, que Maria da Piedade Almeida fala do dia 16 de Janeiro de 1949.

- O meu marido foi preso nesse dia. Era um Domingo, de manhã. Ele ainda estava a dormir, porque nessa noite tocara no grupo “Os Pinantes” até de madrugada. É que o meu António, para além de bom operário vidreiro, era um grande músico. Aos 14 anos já tocava clarinete. Depois aprendeu a tocar saxofone, trompete, trombone de varas e acordeão. Tocava muito bem. E compunha.Na banda era o único que escrevia músicas. A “Marcha dos Pinantes” , que ele compôs , foi muito aplaudida. E tantas outras músicas... Os olhos de Maria da Piedade ainda brilham com o amor dos 20 anos, quando fala do seu Toni.
- Era um grande músico e um grande homem. Não imaginam o prazer que tinha em ensinar os miúdos a ler. Porque eram ainda muito miúdos quando começavam a trabalhar no vidro. Alguns nem tinham tempo para ir à escola.

-Mas estava eu a falar do dia em que o meu António foi preso.
Ouvi bater à porta, fui abrir e lá estavam dois homens desconhecidos que me perguntaram: “É aqui que mora o Sr. António Lopes de Almeida?”
Pela má catadura deles, percebi logo que eram pides e até um calafrio me subiu pela espinha. A custo, perguntei: “Que lhe querem?” . “Não é da sua conta. Vá chamá-lo, que temos pressa”.
Fui acordá-lo e ele, ainda ensonado, veio à porta.
“Apronte-se, que tem de nos acompanhar à esquadra?” . “À esquadra? Para quê?” . “Precisamos de ter uma longa conversa”. “Tenho de me lavar, barbear e…” “Vá, rápido. Não temos o dia todo”

-Eu tinha o coração mais apertado que um nó cego. Fui ver a menina. Ainda dormia naquela paz e doçura que só uma criança tem enquanto dorme. Dei-lhe um beijo e as lágrimas correram-me desatadas. Foi aí que o meu medo começou. Medo pelo que se estava a passar e medo pelo que poderia vir a acontecer. Mas estava longe de adivinhar todo o horror que se passou. Saí do quartinho da minha filha e fui ter com o meu marido. Tentei aparentar coragem, mas o pavor crescia dentro de mim. Pôs-me o braço sobre os ombros, como se me quisesse dar forças e disse baixinho:”Não vai ser nada. É tempo de eleições e a pide quer meter medo às pessoas. Amanhã estou de volta, vais ver”.

A menina acordou entretanto e veio ter connosco. O pai pegou-a ao colo e voltámos os três à salinha onde os pides esperavam.Um deles disse-lhe: “Olhe, diga à patroa que lhe leve o almoço, que isto vai durar”. Foi assim, como se eu não estivesse presente, como se eu não contasse para nada.
E levaram-no. A menina, com 5 anitos, assistiu à prisão do pai e também nos seus olhos se espelhava o medo. Perguntou: “Para onde vai o pai’” “Teve de sair”. “Para onde foi?” “Foi com uns senhores, mas não demora.” “Foi com uns senhores, mas não demora”. Daí a minutos perguntava outra vez: “Quando vem o pai?” “Olha, minha querida, vamos fazer o almoço e levamos-lho, está bem?”
E levei-lhe o almoço ao quartel da GNR, junto do Mercado Velho, a Resinagem. Ele então pediu-me :”Traz-me roupas, Piedade. Vão levar-me para Lisboa, para interrogatório”. Fiquei sem fala. O pavor parece que se tornou uma vaga enorme que me estava a submergir. Custava-me a respirar. De boca aberta, parecia um peixe fora da água. “Vamos no comboio da tarde, Piedade. Vá, calma, não há-de ser nada. Eu não fiz nada. São umas perguntas para amedrontar ”. Lá consegui respirar e vim para casa, porque não queria que ele me visse chorar mais. Preparei uma maleta e aprontei a minha Suzete para nos irmos despedir dele à estação. A menina, ainda tão pequenina, mas parecia que percebia o que se estava a passar. Muito abraçada ao pai, a chorar, não o queria largar. Era de cortar o coração. E eu, ao abraçá-lo, disse-lhe ao ouvido “Oh, Toni, eles vão fazer-te mal. Vão torturar-te, mas tem coragem. Não dês o nome de ninguém”. E ele respondeu ao meu ouvido: “Tu conheces-me, Piedade. Sabes que eu nunca seria capaz de trair um amigo ou um camarada”.

- Depois arrependi-me muitas vezes de lhe ter dito tal coisa. E pensava cá para comigo : “ Quem sabe se ele tivesse dado um nome ou dois, daqueles que até já tinham sido presos, ele e os outros não seriam soltos mais dia menos dia?”
Mas também sei que mesmo que eu não lhe tivesse dito nada, o meu António não denunciaria ninguém.

Porém, ele... ele foi denunciado... Havia sempre bufos, mesmo onde não era de esperar.
Fez uma longa pausa, pois a ferida antiga fora reaberta. Perpassa funda amargura nas palavras que profere.
- Se houver contas a ajustar... Olhe, já lá estão os dois.

E continuou com voz mais sumida:
- O que o meu marido sofreu! Esteve 48 horas seguidas de estátua. Se escorregava para o chão, era logo “Levanta-te, cabrão” e pontapés por onde calhava: nas costas, na barriga, nos testículos. Se fechava os olhos de exaustão, eram pontapés na cara e na cabeça. Partiram-lhe o nariz, os óculos, escorria sangue por todo o lado. (Soubemos destas coisas por outros presos e porque o homem da funerária contou como estava o corpo: todo pisado. Todo ele era uma nódoa roxa. Disse que mais parecia o pano da Paixão.) . Tudo isto se passou na António Maria Cardoso e no Aljube. A prisão, a tortura e a morte : tudo isto em 3 dias ou 4.

Todavia há orgulho na voz sofrida desta mulher de 92 anos quando afirma:
- Mas nunca denunciou ninguém!

Regressa à sua memória e os seus olhos mostram que a lembrança lhe dói profundamente.
Quanto sofreste, meu Toni. Quanto eu sofri, nesses dias e em todos os outros dias da minha vida. Sentindo sempre aquele medo imenso, que me gelava o sangue. Não conseguia dormir e se caía no sono, tinha pesadelos infernais. Acordava aos gritos. Punha uma almofada na boca e mordia-a com força para não acordar a minha filhinha. De manhã tinha de tratar dela, sem choro nem lágrimas. E a menina continuava a perguntar: “Quando vem o pai?” “Não tarda aí, meu amor”. Que difícil compor um sorriso quando o coração geme e sangra. “Quero o pai”. E eu tinha de me virar de costas para ela não me ver chorar.

- Quando o meu marido foi torturado, estava no Aljube um estudante de Coimbra, preso nas lides da campanha de Norton de Matos. No corredor passavam um pelo outro. O meu António, com o rosto todo maltratado, os olhos muito negros e inchados, segredou-lhe: “Estive dois dias de estátua. Não me arrancaram nada nem arrancarão”. Na volta seguinte mais umas palavras: “Sou Lopes de Almeida, Marinha Grande. Estão a matar-me de pancada”. O estudante foi solto daí a um ou dois dias e viu a notícia da morte de António Lopes de Almeida, que se enforcara no Aljube. Mas não dizia que era da Marinha Grande. Cheio de fúria, correu ao jornal “República”, explicou tudo o que viu, e então a notícia saiu correcta.

- Mas como podia ele ter-se enforcado, se não tinha corda, nem cinto, nem atacadores dos sapatos. Realmente, segundo me contaram os meus primos Bajancas (isto é uma alcunha, que o apelido deles é Neto, e foi a eles que eu pedi que arranjassem uma funerária para tratar do corpo e do funeral), o meu marido tinha um vergão roxo à volta do pescoço. Mas a pide é que o dependurou já morto ou moribundo, para fazer crer que ele se tinha enforcado. Aliás, isso era prática muito frequente na pide.

Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, os meus primos levaram-me à funerária, mas o caixão já não se encontrava lá. O proprietário contou-me que, ao preparar o corpo, um dos empregados havia encontrado num bolso do pijama um papelinho escrito com sangue “Avisem minha mulher, Mª Grande”. “ Dê-me esse papelinho, por favor”. “Não o temos. A pide veio cá hoje mesmo buscá-lo”. “Mas como é que a pide soube?” “Minha senhora, a pide tem olhos e ouvidos em todo o lado. Até na casa dos mortos”.

- Eu percebi então que o meu António, à beira da morte, teve medo que a pide destruísse o seu corpo.

- Um agente da pide, de nome Fernando Gouveia, muito chegado a uma vizinha da minha cunhada Maria João, falou um dia sobre a tortura e morte do meu marido e disse: “O António Lopes de Almeida era um Homem. Um vidreiro, mas não um operário comum. Muito culto. Só que nunca quis dizer a verdade. A culpa foi dele. Porque é que nunca disse o que devia? Portanto, ele é que se enforcou”.

-Repare que todas estas coisas se foram sabendo com o tempo. Desculpe contar assim, sem jeito nenhum. Vou voltar atrás, ao Domingo seguinte à prisão. Era dia 23 de Janeiro e o grupo “Os Pinantes” estava a tocar num baile na Nazaré, quando alguém chegou com o jornal “República” e disse: “Mataram o António Lopes de Almeida”. Eram 4 horas da manhã quando ouvi duas pancadas na janela do meu quarto. O meu coração parou. Senti uma dor... sei lá … a dor da morte. Sabia, tinha a certeza, que o meu António morrera antes mesmo de ouvir dizer “Não tenha medo, Piedade. Sou eu, o Mário”. Era o Mário Macatrão. Abri a janela. “Venho dizer-lhe o que se passou com o seu marido”. Contou-me o que o meu coração já tinha adivinhado.
De manhã, fui chamada à Câmara e o Presidente disse-me: “Vá já para Lisboa tratar de assuntos referentes ao seu marido”. Eu já estava vestida de luto.

Avisei os meus primos e fui logo para Lisboa. Dirigi-me à António Maria Cardoso, pois era lá, pensava eu, que deveria reclamar o corpo, a fim de lhe dar um funeral digno na Marinha Grande. Veio um pide e, com falinha mansa, disse-me: “O corpo não pode ser entregue já. Só daqui a três meses é que o pode levar”. Pensei que enlouquecia. Desatei a gritar: “Quero o corpo do meu marido. Que lhe fizeram? Que lhe fizeram depois de o matar?”. “Ouça, não grite. O seu marido terá um funeral. O Governo Civil está a tratar disso”. Empurraram-me. Obrigaram-me a sair. Já no meio da rua continuei a gritar “Assassinos! Assassinos! Mataram o meu marido. Já que não mo dão vivo, dêem-mo morto”. O pide que me agarrara por um braço, ameaçou : “Cale-se, mulher, se não o corpo ainda vai parar à vala comum e você nunca mais saberá dele”. Eu não consegui parar de gritar. Foi o único momento em que não tive medo, talvez porque devo ter pensado que já não tinha mais nada a perder. Os meus gritos fizeram assomar muitos rostos assustados às janelas apenas entreabertas. “Assassinos! Assassinos!” . Gritei até a voz me doer. Gritei para lá da dor. Ali fiquei derrubada , no meu desespero e no meu soluço.

Quando consegui pensar, percebi que o que a pide queria era deixar passar o tempo, para que o caso caísse no esquecimento, porque era período de eleições e para que as marcas da tortura desaparecessem.

- O corpo de meu António ficou no gavetão nº 59 no cemitério de Benfica. Mais tarde soubemos que esse gavetão fora pago pelo Governo civil de Lisboa não por 3 meses, mas por 50 anos.E assim teria acontecido, se não fosse o 25 de Abril.

Quando íamos ao cemitério de Benfica pôr flores, por vezes interrogava-me se a pide não teria ido lá retirar o corpo. Até esse medo eu tive.
Um coveiro chegou a dizer-nos: “Preparem tudo na Marinha Grande e venham cá uma noite e levam o caixão.” Mas, obviamente, isso não se podia fazer assim.

Na Marinha Grande, logo que se soube da morte do meu marido, as fábricas pararam, os trabalhadores vieram para a rua e, em frente do Sindicato dos Vidreiros e no Largo da Câmara gritavam em altas vozes: “Queremos o Homem” “Queremos o Homem”. Foi um pide que chegou à varanda e disse: “Calma, que o Homem vem”. E veio. Mas passados 30 anos.
Mas já estou outra vez a adiantar-me aos acontecimentos.
Mais uma pausa no relato. Mais um reavivar da dor.

-Vou tentar retomar o fio da meada. O meu António não sobreviveu à tortura. Eu nem sei como sobrevivi a tanta dor, porque sofrer na alma é sofrer mil mortes. O que me prendeu à vida foi a minha filha, que eu, tão cedo viúva, ia ter de criar sozinha. Por isso, havia que secar as lágrimas eenfrentar a dura realidade. A morte do meu António não podia ter sido em vão. Tudo o que eu sentia: desespero, raiva, angústia, uniam-se num sentimento que me tolhia: o medo. Eu era vigiada. Fui vigiada anos e anos. E o medo entranha-se em nós até ao tutano. Tinha medo que me destruíssem também e eu tinha de viver e trabalhar para a minha filha.

- Quando havia qualquer movimento dos trabalhadores, para pedir aumento, ou melhores condições de trabalho, toda a gente, colegas e dirigentes sindicais me recomendavam que eu não me mostrasse, não saísse da fábrica, pois estava muito marcada. Na verdade, estava marcada pelo medo na alma e no coração. Mas aprendi que o medo também nos pode dar coragem. Coragem e força para lutar pelo que é nosso, pela nossa família, pelos nossos direitos.

- Já contei que trabalhava numa fábrica, na “Catita e Barros”, mas não disse o que fazia. Fui empalhadeira quase 20 anos. Era um trabalho muito duro. As costas ficavam derreadas e, a certa altura, comecei a ter dores muito fortes na barriga. Já quase nem podia encostar nela o garrafão, porque as dores se tornavam insuportáveis. Fui operada a um tumor e reformada por invalidez com 170 escudos mensais. Foi em 1961. Claro que isto não dava para viver e eu trabalhava em casa, empalhando coisas pequenas como garrafõezinhos e cantis-miniatura que a Elisa Bizarro vendia em Fátima. Era um trabalho menos duro, mas que exigia arte e paciência, porque a empalhação tinha de ficar como uma renda.

- No meio de tanta desgraça gostaria de dizer uma coisa muito linda sobre um patrão que tive e que era a excepção à regra: o Dr. Artur Barros. Grande amigo do meu marido, tinha pena de mim e da minha filha. Um dia perguntou-me: “Então a miúda vai bem nos estudos?”. “Vai, sim. Fez a 4ª classe e agora vai trabalhar”. “Trabalhar? Tão pequenina? Seria o que o pai queria?” . “ Não, não era. Mas o que eu ganho não dá para mais estudos” . “Escuta o que te digo, Piedade. Olha que sem estudos não se vai a lado nenhum”. “Sei que o senhor tem razão, mas…” “Eu tomo a meu cargo os estudos da pequena”. Foi assim que a minha Suzete continuou a estudar. E foi assim que pôde arranjar um emprego melhor do que ser empalhadeira.

- Hoje ajudo a minha filha a criar os filhos: os meus netos que, felizmente, não tiveram de viver num regime de opressão e de medo.

- Para terminar, só vou falar de um dos momentos mais importantes da minha vida: a trasladação dos restos mortais do meu marido para a terra que era a sua e que ele tanto amava.
Claro que teve de se dar o 25 de Abril. Teve de chegar a liberdade, tão duramente conquistada por mulheres e homens corajosos. A liberdade pela qual alguns, como o meu António, sacrificaram a própria vida.
Após 30 anos teve o funeral que lhe era devido. Foi no dia 13 de Março de 1979 que os seus restos mortais desceram à campa nº 1648, no cemitério da sua querida vila. Os trabalhadores da Marinha Grande, em peso, estavam lá.
Após 30 anos o Homem regressou, finalmente, à sua terra.


Maria da Piedade Almeida, in Júlia Guarda Ribeiro, Mulheres da Marinha Grande - histórias de luta e de coragem, Folheto Edições & Design, Leiria, 2008, pg. 39-53

quinta-feira, janeiro 21, 2010

No bicentenário de Chopin (1810-2010)




CHOPIN, 1831

Estás em Viena, inclinado sobre a primavera
com dedos brandos a tactear saudades. Folheias
um álbum com recordações de Varsóvia e sabes
que a solidão é uma ave sufocante e implacável,
um ofício que verte nas teclas todo o seu desespero.

Escreves, tu que foste feito para cantar,
breves, sincopadas notas íntimas onde cabe,
totalidade de insónia e fogo, o coração
que teimas em adiar. Que mal existe em estar
saudoso, em sentir que a cidade amada se escapa
pelo vazio dos dedos, a latejar de sofrimento?

É como se enlouquecesses. Notícias chegam
de que a cidade continua a padecer de uma dor
que mora nas casas, nos quartos, nos livros
na alegria contida das mazurkas. 1831, não
crês que seja possível resistir por mais tempo
e é mais um pedaço de ti que morre na clave
de sal de um estudo menor, patriótico até
à profundidade sem música das lágrimas.

Escrever para onde, eu que te amo na carne
trágica de um prelúdio universal? Dou por mim
a cantar-te em timbre de carta sem remetente,
sem endereço, sem data possível. Separa-nos,
impiedoso, um tempo na tortura das lembranças
esquecidas a um canto do piano neste quarto.

Falavas de nostalgias e inquietação e eu não sei
de outras palavras que melhor pudessem dizer
a substância de cinza e ouro de que a tua música
é feita. Queres voltar pela vertente mais agreste,
pelo caminho de treva que a lugar algum conduz
e eu estou à tua espera no arco nocturno
da cidade amada para te dizer que ninguém
é estrangeiro quando tu tocas, que ninguém
de si mesmo se divide no círculo de âmbar
do teu mágico, lírico, desesperado canto.


José Jorge Letria in Carta de Afectos, Livros Horizonte, 1989