quinta-feira, março 30, 2017

O Ensino Artístico e a Reforma da Escola de Belas Artes de Lisboa


Sempre me perguntei o porquê da não existência de uma História do Ensino Artístico entre nós. É uma lacuna incompreensível. Mas a verdade é que está por fazer. É certo que até há poucos anos não existia sequer uma História do Ensino em Portugal, mas isso foi possível fundamentalmente graças aos trabalhos de Rui Grácio, Rogério Fernandes e Rómulo de Carvalho. Hoje podemos dizer que temos uma História do Ensino ao nível primário, técnico, liceal, universitário, mas ... falta o artístico. É área onde os investigadores parecem ter dificuldades em abalançar-se. Ou então não sentem qualquer atracção por ela. O que não admira pois nem o Estado a valorizava.
 

Bem, para sermos verdadeiros hoje já temos uma meia História do Ensino Artístico. Isto porque houve uma mulher extraordinária, a Maria Helena Lisboa, professora da Escola António Arroio, que sentiu de tal forma essa lacuna que estudou e publicou em 2007 a sua tese de doutoramento, «As Academias de Belas Artes e o Ensino Artístico (1836-1910)»; lamentavelmente faleceu cedo de mais, em 2009, e o projecto de avançar pelo século XX, entre a implantação da República e o 25 de Abril, ficou pelo caminho.

Se verificarmos qualquer levantamento cronológico das Escolas de Belas Artes, quer na de Lisboa ou na do Porto, ou mesmo na Academia Nacional das Belas Artes, (1932), constatamos que existe um período longo, entre 1911 e os anos cinquenta, em que parece nada se ter passado. E esse vazio torna-se gritante.

Porque é precisamente no século XX que têm lugar algumas reformas que, não sendo as exigíveis para um ensino de qualidade, alteraram algumas normas de acesso e os curricula dos cursos tornando o ensino um pouco mais exigente. Nos anos vinte, por exemplo, criou-se a Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, que passou a tutelar o ensino artístico, sob a alçada do Ministério da Educação. E houve a grande reforma de 1932 (Dec 21662, Set 1932, DG 214) que, no essencial, deu corpo ao ensino praticado até Abril. A reforma de 1952 que pretendia aproximar o ensino pouco mais que técnico ao superior ficou suspensa até 1957 quando, por fim, a lei foi regulamentada e a escola passou a designar-se por ESBAL. Escola superior apenas na designação pois continuava fora da Universidade o que só se concretizou depois de Abril.

Aliás, quando as escolas foram autonomizadas e regulamentadas em 1911, não havia obrigatoriedade de quaisquer habilitações académicas, bastando, para entrar ter jeito para o desenho. Uma nota positiva na reforma de 1932 foi a introdução do Exame de Aptidão, mas o mesmo cingia-se a uma prova do chamado «Desenho do Antigo», bastando ao candidato uma cópia sofrível do real sem dar oportunidade às suas capacidades criadoras.

Também para a admissão dos alunos de arquitectura passou-se a exigir a «alínea H do 3º ciclo dos Liceus», enquanto aos de pintura e escultura bastava o 9º ano de escolaridade, ou seja, o antigo 5º ano liceal. Mas continuavam a ser ressalvados os casos de «pessoas que revelassem vocação artística excepcional e nível cultural adequado» poderem ser admitidas sem as habilitações exigidas, mediante autorização do Ministério da Educação.

Na verdade os alunos de Belas Artes sempre foram menosprezados pelo poder político que nem sequer considerava os homens capazes para integrar a escola de oficiais milicianos quando chamados para o serviço militar, o que era um factor de enorme desinteresse. As coisas começaram a mudar quando alguns filhos de gente grada do regime entraram para a escola e as queixas começaram a chegar a Salazar que foi obrigado a prestar alguma atenção a este ramo do ensino. Foi essa situação que levou à reforma de 1951/52 que só foi incrementada em 57, como já referi.

E chegámos ao 25 de Abril nestas condições.

Na Escola de Belas Artes de Lisboa praticava-se um ensino obsoleto e academizante que desconhecia quaisquer rasgos inovadores e onde grande parte dos alunos esteticamente mais atrevidos eram perseguidos. Muitos mudaram de curso e outros não chegaram sequer a completá-lo. Alguns, com mais possibilidades económicas, pediam transferência para a escola do Porto onde o ensino era menos académico e o director, Arqtº Carlos Ramos, de maior abertura democrática, ou, então, iam ali fazer uma ou duas cadeiras que em Lisboa estavam sob a alçada do arqt Luis Alexandre da Cunha (1893-1971), o homem que passou à posteridade como o «Cunha Bruto» e dirigiu repressivamente a escola nos anos trinta e quarenta, mas que o regime foi obrigado a demitir do cargo por problemas com colegas e alunos, ficando apenas como professor, e vindo, inclusivamente a ser impedido de dar notas aos seus alunos, em 1952, quando foi objecto de um processo da tutela, mercê de uma acção concertada de alunos, ex-alunos e pais de alunos contra as suas arbitrariedades pedagógicas.

Quando um dia se fizer a história do ensino artístico ou apenas a história da Escola de Belas Artes de Lisboa, ver-se-á que houve sempre alunos que se rebelaram ao longo dos tempos e lutaram para mudar este estado de coisas. Mas foram sempre bloqueados: pela direcção, pelo corpo docente, pelas autoridades ministeriais, pela censura ou tão só pela indiferença dos colegas. Tal como nunca abdicaram da luta por uma Associação de Estudantes eleita democraticamente, que existiu e foi reconhecida nos anos trinta mas que, posteriormente, a Mocidade Portuguesa com os seus pareceres à tutela nunca deixou que ali se implantasse.

Nos arquivos encontrei a entrevista abaixo, do Jornal República, que foi totalmente cortada pela Censura e, de seguida, os censores enviaram para a tutela que aprovou e agradeceu o zelo demonstrado.

Foi em Novembro de 1957 e falava-se da aplicação da Reforma.

Os corajosos alunos que falaram ao jornal foram: José Santa-Bárbara, de escultura, José de Almada, Manuel Vicente e Francisco Pires Keil do Amaral, de arquitectura.

O jornalista que foi ouvi-los era o Alfredo Noales, também ele um resistente à ditadura e que faleceu prematuramente em 1965.










Após ter impedido a publicação da entrevista, o director dos Serviços de Censura, Armando Larcher, apressa-se a informar o Ministério da Educação enviando-a ao Secretário de Estado com a seguinte nota, que transcrevemos:  

«Meu Prezado Amigo:

A "República" decidiu ouvir os estudantes oposicionistas sobre a reforma das "Belas Artes", o que me não parece bem, pelo que opto pelo corte.

A mentalidade política desta gente não lhe permite apreciar com a necessária independência de espírito nem esta Reforma nem qualquer outra, que não seja feita por democratas puros, ortodoxos.

Agradecia-lhe consultasse o nosso Ministro.

Uns resquícios gripais têm-me impedido de ir ao Ministério apresentar os meus cumprimentos ao nosso querido Ministro. Peço que o faça em meu nome, enquanto aí não vou.

Abraça-o cordialmente
o amigo e admirador»







Resposta do Gabinete do Ministro:

«Acho que o Sr. Director da Censura viu lucidamente o problema.
Das duas, uma - ou há censura ou não há. Se há é para se escrever e escrever com grande independência: a crítica é tendenciosa, injusta, incompetente.

Os alunos não sabem o que querem no campo pedagógico - esta tese em voga está errada. Sujeitos da educação, não são educadores nem juízes.

Quanto à Reforma - ela foi discutida ao tempo, por todos e finalmente aprovada pela Assembleia Nacional.

O corte está certo.»




E assim se decidiu da Reforma das Escolas de Belas Artes, em 1957, apesar de muito ter sido discutida, fora dos recintos escolares, obviamente, por alunos e ex-alunos que mais uma vez viam adiados os problemas com que sempre se haviam debatido, sobretudo na Escola de Lisboa.  

Julia Coutinho