quarta-feira, maio 03, 2017

Jose Viana (1922-2003) e a 2ª EGAP ou como um quadro pode ser eficaz e incomodar o regime


Força, de Viana Dionisio, apreendido PIDE na II EGAP, 1947
José Viana, «Força», 1947, col. do CAM da FC Gulbenkian
(quadro apreendido pela PIDE na II EGAP [1] -Exposição Geral de Artes Plásticas, 13 Maio 47)
 

Com o final da Guerra, em 45, os oposicionistas acreditaram na possibilidade de uma mudança democrática para o país. Não anunciara Salazar a organização de eleições livres, «como na livre Inglaterra»?  Esta declaração levou à génese do Movimento de Unidade Democrática (MUD) após uma reunião no Centro Republicano Almirante Reis, a 8 de Outubro, e ao lançamento de listas de aderentes, que rapidamente se encheram de assinaturas, por todo o país. Pediam-se «eleições livres», sim, mas também um adiamento das mesmas que permitisse a reorganização adversária e a constituição de uma lista para concorrer às eleições. Mas Salazar não estava interessado, obviamente, e não as adiou. Pelo contrário, obrigou à entrega das listas e perseguiu todos os que as assinaram, tendo sido demitidos os funcionários públicos por traição ao célebre decreto de 1935 [2] que obrigava a fidelidade ideológica ao regime.
A partir do MUD constituiu-se a Comissão de Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos, (CEJAD), e foram esses artistas e homens de cultura  que levaram a efeito as dez EGAPs (Exposições Gerais de Artes Plásticas), realizadas entre 1946-1956, na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). Tarefa árdua que exigiu empenho e luta pela conquista desta instituição, dominada até então por direcções obsoletas e refractárias a tudo o que fosse novo.  A SNBA abria-se à modernidade, passando a constituir a Casa dos Artistas, de todos os artistas, conforme os objectivos da sua formação, em 1901.
As EGAPs excluíram os habituais júris de selecção. Todos os expositores eram bem-vindos. Novos e velhos. Antigos e modernos. Por isso se chamavam gerais. Por admitirem todos os géneros artísticos, independentemente dos conceitos estéticos de cada um. O objectivo era juntar a família artística numa frente que se opusesse aos salões oficiais estadonovistas.
«Não está em causa (…) o valor (…) das obras apresentadas. Aqui surgem nomes consagrados e nomes de estreantes, obras de certo fôlego e obras que não vão além dum simples esboço. A atenção deve antes voltar-se para as intenções da exposição, para a afirmação deste desejo de cooperação,  para esta necessidade de unidade que a Arte hoje exige em seu favor e aqui irmana artistas tão diferentes e tão afastados até agora.»[3]
 
Mário Dionísio virá a corroborar esta ideia central de unidade, em 1975: «À CEJAD [pertenceram] muitos artistas, de todas as idades e tendências estéticas e ideológicas. De um dia para o outro, esses artistas compreenderam que, por mais importantes que fossem as diferenças que os separavam, (…) algo de comum os unia. Que, além de impressionistas ou naturalistas, surrealistas ou neo-realistas, eram também anti-fascistas e que, sem prejuízo das suas posições próprias no campo da arte, (…) o seu lugar era ali, na grande frente enfim formada contra o inimigo (…) de nós todos.»[4]
Uma exigência se impunha como se um «pacto de honra» unisse a todos:
«a de não ter exposto nunca no SNI[5] ou de não voltar a lá expor a partir daquela data»[6]  
Aboliram-se também as tradicionais presenças do Presidente da República e seus acólitos, nas inaugurações. As portas da SNBA abriram-se, simplesmente, a todos que quisessem fruir das obras de arte e dos seus autores. Os objectivos eram claros e vinham consignados desde o primeiro certame, reafirmados no catálogo do segundo:
«aproximar a arte do povo. (…) trazer ao povo as várias linguagens das artes plásticas, lado a lado, para que ele aprecie e lhes descubra as mútuas relações; trazer ao povo uma mensagem de amizade e solidariedade».[7]
A primeira EGAP, em Julho de 46,  juntou 93 artistas e teve inusitada afluência de público. A segunda, em Maio de 1947, reuniu um número maior de expositores e de obras, mas, então, já o clima social estava ao rubro. Particularmente agitado, o ano de 47 foi palco de acesas lutas políticas, nas escolas e fora delas, por parte dos jovens do MUD juvenil [8], fortemente implantado entre os estudantes. Proibida a Semana da Juventude, que haviam programado para Março desse ano, todas as iniciativas culturais dos jovens mudistas viriam a ser impedidas, muitas delas por intervenção policial violenta. As prisões sucederam-se e, a pouco e pouco, todos os dirigentes daquele movimento juvenil foram parar ao  Aljube e a Caxias[9].
Ao MUD e ao MUD Juvenil, e, por conseguinte, à CEJAD (Comissão de Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos), pertenciam os artistas reunidos nas EGAP’s. Muitos deles já haviam passado pelos calabouços da polícia política e outros estavam presos, como Júlio Pomar. Apesar das conjunturas política, cultural e social serem dificílimas,  apesar das perseguições e das cisões que foram ocorrendo, a verdade é que cada ano chegavam novos artistas militantes e, as Gerais, puderam realizar-se até meados da década seguinte, podendo afirmar-se que foi nelas que o Neo-Realismo se afirmou nas artes plásticas. Muitos nomes consagrados ali expuseram pela primeira vez. E novas abordagens estéticas e artísticas também ali foram iniciadas[10]. Era uma forma de Luta e de Resistência e, sem dúvidas, aquele foi, reconhecidamente, o «Salão da Oposição», entre 46-56.
Mas vejamos o que se passou nesta 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, inaugurada a 4 de Maio de 1947, um domingo,  «sem pompa e circunstância» mas com uma afluência de público nunca vista, até porque, segundo Mário Dionísio,  «ia-se à EGAP como se vai a uma manifestação. (…) era como um grande comício sem palavras».[11]
José Viana, na entrevista que concedeu a Lauro António e foi por este reproduzida no catálogo que organizou em 1997, deixou-nos o testemunho sobre a sua participação nesta 2ª EGAP ao mesmo tempo que nos situa no contexto e ambiência então vivida nas artes.
«Eu aderi ao neo-realismo e, em 1947, participo pela primeira vez numa exposição que é a Segunda Geral de Artes Plásticas, mas que é uma exposição marcadamente política. Tinha acabado a guerra, havia a esperança na democratização do regime português, pelo menos havia a esperança que houvesse possibilidades de luta, criou-se o MUD, Movimento de Unidade Democrática, do qual eu participo, e faço o meu primeiro quadro a óleo, quadro de composição, que teve honras muito grandes, que foi exposto nas Belas Artes e apreendido pela Pide[12]. fiquei muito contente, era muito importante ter dado um contributo, ter atirado uma pedrada no charco.[13]

Viana tem razão. O contexto era de acesa luta política e os artistas, reunidos em torno das EGAP’s, ao perseguirem «um caminho único para a defesa da Arte (…) ameaçada (…) sob os mais diversos proteccionismos» pretendiam, fundamentalmente, atingir esse «soberano baluarte do SNI» e a sua famigerada «política do espírito» segundo Dionísio. E conseguiram-no.  Logo a 7 de Maio, o Diário da Manhã, orgão oficioso do regime, pela mão do crítico de artes plásticas, Fernando de Pamplona, na sua rubrica «Belas-Artes, Malas-Artes», denunciava: 

«Quem são os expositores? Todos ou quase todos marcados politicamente como serventuários das velhas facções fautosas da guerra civil, como inimigos declarados ou encapotados da Revolução Nacional, que salvou Portugal da desordem, da ruína e da vergonha».
E mais adiante, sobre as obras expostas 
«sobrenadam, nesta verdadeira «salada russa», os mais característicos espécimes do anarquismo estético. Sobretudo entre os novos do grupinho, nota-se a tendência, não para a deformação expressiva, não para a audácia inovadora, mas para a disformidade, para o aleijão, para o aborto. São figuras teratológicas, são imagens de pesadelo, são rostos escaveirados de famintos e de loucos (..) um macabro cortejo de horrores, que, só por si, documenta todo um processo de perversão da sensibilidade e da inteligência.»
E depois de especificar alguns nomes, afirma:  
«sob a capa da inquietação, da ansiedade, [aqueles artistas] patenteiam a sua morbidez, a sua nevrose, o seu horror de toda e qualquer disciplina ordenadora, a sua irresistível fascinação ante o torvelinho e o negrume do caos.»[14]
Estava dado o sinal de alerta. O poder sentiu-se verdadeiramente ameaçado. No dia seguinte (8 Maio) o Presidente do Conselho «trabalhou com o ministro do Interior, Cancela de Abreu»[15] e, no dia 9, sexta-feira, na primeira página do Diário da Manhã, era lançada a grande investida contra a 2ª EGAP, com um título a sete colunas que era um primor de jornalismo:

«A Frente Popular» da Arte ou a «unidade» no pessimismo e na desordem manifesta-se numa exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes em que figuram verdadeiros burgueses e pseudo-revolucionários e em que aparecem as botas de elástico do sr. Falcão Trigoso e o modernismo de “tampa de caixa de amêndoas” fazendo fundo aos “revoltados sociais”!» 
1ª página do Diário da Manhã de 9 Maio 1947


O artigo de fundo era ilustrado por três reproduções de quadros expostos[16], sendo um deles, precisamente, a obra Composição, (mais tarde rebaptizada «Força»), de Viana Dionísio, nome por que era conhecido José Viana, acompanhada da seguinte legenda:
«Um molho de espargos e rabanetes ou tétrica imagem dos campos de concentração soviéticos? Nada, nada… são apenas revoltados sociais com muitos pés e muitos seios, pés metidos pelos seios, seios metidos pelos pés, tudo em estilo de noite de trovões pelo sr. José Maria (Viana Dionísio), que não pôs preço à sua “Composição” … talvez por o quadro ter sido feito de encomenda»
Diário da Manhã de 9 Maio 47 pg.1, quadro de José Viana


Aqui ficam alguns respigos desse longo artigo bem ao estilo «arruaceiro e grosseirão» que caracterizava aquele orgão da chamada «Revolução Nacional» salazarista:
«nunca se reuniu em Portugal tamanha colecção de monstruosidades, tão grande quantidade de atentados contra a verdadeira beleza, perpetrados na tela, no cartão ou no gesso!»

«Pergunta-se (…) qual o traço de união entre aquelas naturezas dispares, entre aquelas diferentes «concepções» de arte, (…) [próprias] dos malucos de Rilhafoles ou de espertalhões e de aventureiros que jogam no snobismo e na papalvice dos seus contemporâneos! (…) o que une – aqueles macróbios cujas telas parecem vir de além túmulo, aos jovens inexperientes que pintam em caves sem luz e certamente esgotaram a tinta vermelha no mercado (…) Gente que se considerava modernista,(…) de incrível sensibilidade acerca de «escolas» e de «épocas», aparece agora lado a lado com os «velhos» (…) em nome de uma «Unidade» que a gente não vê – mas de que não desconhece a suspeita origem!  Inimigos em arte – foi a política que os juntou! Foi o sectarismo que os uniu! Foi o ódio que os tornou irmãos!  (…) naquela babilónia de mostrengos, descobriu a «cerebração» que escreveu o prefácio do catálogo «o valor da cooperação e da unidade» – cooperação… política, unidade… na desordem.»[17]

E de novo se chamava a atenção para o quadro de José Viana (Viana Dionísio), entre outros:
«Nos pintores da «Exposição Geral» quando um homem (…) não foi apanhado à saída do Hospital do Rego, (…) está a quebrar cadeias de ferro (como no quadro do sr Viana Dionísio).»

E terminava:
«é esta a miséria máxima que se exibe, num insulto à verdadeira arte, na casa da Rua Barata Salgueiro!»
Estava lançado o anátema que iria, de certa forma, justificar o que veio a acontecer no dia 13 de Maio (terça-feira), pelas 13 horas, no salão da SNBA, na Barata Salgueiro.
«Ouçamos uma vez mais a voz de quem viveu os factos: 

«Pela calada da hora do almoço, quando não havia ninguém na exposição senão uma empregada, o ministro do Interior em pessoa (…) entrou pela sala dentro, na companhia de alguns amigos seus que, por natural coincidência, não eram exactamente críticos de artes mas vulgares agentes da PIDE. (…)E tanto lhe agradaram algumas das obras expostas que, sem pensar em preços ou noutras formalidades, as mandou logo levar e zelosamente arrecadar na Antonio Maria Cardoso.»[18]
 
José Viana virá a referir na entrevista que estamos a citar quando fala do quadro levado pela PIDE: «foram 13 quadros (…) [com] honras de apreensão».[19] Esta foi a versão que chegou aos nossos dias.  De facto a PIDE aproveitara a hora do almoço, sem público e com a presença apenas de uma vigilante da SNBA – Ester Branca Alvarez Lopes -, ou seja, sem testemunhas comprometedoras, para invadir a sala e retirar os quadros. Como «testemunhas legais», dois dos agentes da brigada policial – Rufina Luisa Ligo e José Ferreira.[20]
A tese de que seriam «13 os quadros apreendidos sob a acção directa do ministro do Interior» não pode ser corroborada por nós.  O processo que encontramos nos arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo, confirma terem sido 11 os quadros e 10 os seus autores:  Júlio Pomar, com Resistência; Lima de Freitas, com Guerra; Maria Keil, com Regresso à Terra; Arnaldo Louro de Almeida, com Aguarela; José Alfredo Chaves (Mário Dionísio) com Pintura; ARCO (Rui Pimentel Ferreira), com Pintura; Manuel Filipe, com Asilo; Avelino Cunhal, com O Menino da Bandeira Branca;  Nuno Tavares com duas obras: Ansiedade e Filho Morto; Viana Dionísio (José Viana) com Composição (que veio a ser denominada «Força»), e hoje pertence ao acervo do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian.
Quanto ao ter sido o ministro em pessoa a invadir a SNBA e apreender as obras, também não podemos confirmar. Não restam dúvidas que todas as operações foram desencadeadas «por ordem de Sua Excelência o Sr. Ministro do Interior», como afirmam no processo. Mas, a menos que tenha participado incógnito, o que os autos de busca e apreensão referem é que os trabalhos foram efectuados por uma brigada da polícia política chefiada por «Ferry Correia Gomes, Inspector da PIDE, [com] Mário Constâncio de Oliveira, agente da mesma polícia, servindo de escrivão».[21]
A versão propagada e, cremos, posta a circular pela empregada da SNBA, foi reforçada pela exposição que a Comissão Organizadora (CO)[22] da 2ª EGAP enviou logo no dia seguinte, (14 Maio), ao Ministro do Interior:


«Excelência,
1.       Os signatários, na qualidade de Comissão organizadora da Exposição Geral de Artes Plásticas vêm perante V Exa expor e requerer o seguinte:
2.       Chegou ao n/conhecimento que 13 (treze) trabalhos expostos nas salas da SNBA, – trabalhos que nos haviam sido confiados pelos seus autores e proprietários, para figurarem naquela exposição – foram dali retirados, ontem, cerca das 13 horas;
3.       Particularmente foi-nos comunicado que tal diligência foi levada a efeito por funcionários do Ministério do Interior;
4.       Acontece que esta Comissão é responsável pela detenção, conservação e devolução dos trabalhos ao fim do prazo da Exposição – esta encerra-se em 15 do corrente – ou pela entrega do capital correspondente ao seu preço de catálogo;
5.       Porém, e pelos factos expostos, estamos impossibilitados do cumprimento deste mandato – sem que saibamos a que atribuir tais factos ou vejamos que tal atitude seja de aceitar. Além de que:
6.       Não conhecemos fundamento ou determinante legal que permita ou justifique a apropriação, em tais condições, de obras de arte, produto e propriedade particular;
7.       Por isto, vimos perante v Exa, com o constrangimento que tal atitude impõe, requerer:
a)      que as referidas obras nos sejam entregues para que as possamos devolver aos seus proprietários;
b)      que V Exa nos queira comunicar a determinante que levou aqueles funcionários à referida apropriação, pela primeira vez verificada na História das Artes Plásticas deste país, para que,
c)       por nossa parte, possamos informar os seus Autores, das razões porque se viram privados de continuar nesta exposição.  a) Comissão de Organização»[23]
Trata-se do único documento que veicula essa versão.  Não existem no processo mais referências ao número de obras de arte levadas pela PIDE.

A direcção da SNBA, reunida no dia seguinte, é muito mais cautelosa e regista apenas:
«(…) discutiu-se o caso da apreensão pela polícia, dos trabalhos expostos no nosso salão, pela Comissão Organizadora das Exposições Gerais de Artes Plásticas, sendo por fim aprovada por unanimidade, a seguinte proposta apresentada pelo sr arq. Miguel Jacobetty:   «A Direcção da SNBA tomando conhecimento da saída, por ordem dos Poderes Públicos, de alguns quadros que se encontravam expostos na sala do rés-do-chão, da sua sede, e, portanto, confiados à sua guarda, acto este que não foi acompanhado de qualquer comunicado a esta Direcção, resolve consultar um advogado sobre a legalidade de tal apreensão, a fim de ser elucidada sobre se lhe compete tomar qualquer atitude de defesa das regalias, direitos ou interesses dos seus consócios.(…)»[24] 

Delegaram, ainda, para tratar de todas as questões, o dirigente Pedro de Aguiar, mas a PIDE exigiu, para intemediário, o presidente da SNBA, pintor Constâncio Silva.
O caso assumiu foros de ridículo com o anúncio aparecido no Diário de Notícias, de 14 de Maio:

 «Ao ladrão – Que no dia 13 roubou quadros Rua Barata Salgueiro, pede-se para enviar cautelas penhor»[25]  

 anuncio DN - 2


Tentou a PIDE  saber da autoria do mesmo junto daquele jornal mas tudo o que conseguiu foi um nome suposto,  obviamente:  «José Estêvão de Faria – Rua Barata Salgueiro 32 rc»[26]
Sabe-se, hoje, que os autores foram os então estudantes de arquitectura Joaquim Cadima e Nuno San Payo, ambos já falecidos, tendo sido o último quem redigiu o anúncio por ser ambidextro e, desta forma, poder ludibriar  as autoridades.


Enfurecida, a PIDE chamou todos os  autores dos quadros à Rua António Maria Cardoso e, um a um, obrigou-os a escrever numa folha em branco, o título do quadro apreendido, o seu nome completo e respectivo endereço, a data e a assinatura. Pretendiam comparar as caligrafias e saber se fora algum deles.

Graças a esses documentos individuais podemos saber, ao certo, quantos quadros foram levados pela polícia de Salazar e quais os seus autores. Aqui fica o correspondente documento manuscrito de José Maria Viana Dionísio, José Viana.[27]
autografo de José Viana Dionisio na PIDE - II EGAP, 47


Outro incidente preocupava a polícia: às suas mãos chegara uma cópia dum comunicado em língua francesa, assinado pelo MUD Juvenil e detalhando o caso, enviado à imprensa estrangeira; e mais uma vez o seu conteúdo serviu de mote para novo interrogatório a todos os autores.[28]  

Após o «assalto» da polícia política o público acorreu em força ao salão da SNBA. Todos queriam ver as paredes com os lugares vazios dos quadros «roubados». No entretanto, a exposição chegava ao fim sem que a devolução das obras ou qualquer informação das mesmas tivesse ocorrido. 

Recusando-se ostensivamente a reconhecer a CO (Comissão de Organização) da EGAP, o ministro despachou o requerimento enviado por esta, para a PIDE, com a seguinte informação “os quadros podem ser levantados pelos autores mas não podem voltar a ser expostos”.   

A decisão ministerial foi oficiada pela PIDE ao presidente da SNBA ignorando os membros da CO que, não se conformando, reincidiram em nova exposição a Cancela de Abreu:  

«Excelência
Os signatarios, na qualidade de Comissão Organizadora da Exposição Geral de Artes Plásticas requereram a V. Exa. em 14 de Maio de 1947, para que lhes fossem entregues os quadros retirados daquela Exposição por funcionários desse Ministério, e lhes fosse comunicada a determinante da apreensão.
Até hoje não obtiveram resposta.
Souberam porém, indirectamente, que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado oficiara à Sociedade Nacional de Belas – a instância desta – comunicando-lhe que os quadros seriam entregues aos seus autores na Directoria da referida Polícia, não devendo voltar a ser expostos.
Muito embora continuassem aguardando a resposta ao seu requerimento apressaram-se os signatários a comunicar aos interessados a decisão da Polícia.
Sucede porém, que alguns dos autores dos quadros apreendidos não se podem deslocar à Directoria da PIDE – um por estar preso e outros por viverem longe de Lisboa e com afazeres que não lhes permitem a deslocação. Além disso e principalmente entendem que compete à Comissão Organizadora da Exposição – a quem confiaram os seus quadros – efectuar as diligências necessárias para os reaver e lhos entregar, ou pagar-lhes as importâncias correspondentes aos seus preços de catálogo.
Não pode nem quer esta Comissão eximir-se à responsabilidade da devolução dos quadros, que lhe é imputada. Julga, pelo contrário, que ela constitui um indeclinável dever, para o cumprimento do qual envidará todos os esforços.
E, porque assim o considera, vem novamente requerer a V. Exa. para que ponha termo a esta triste e lamentável ocorrência, satisfazendo o que se pedia no requerimento apresentado e aqui se repete:
1.       que as referidas obras nos sejam entregues para que as possamos devolver aos seus proprietários;
2.       que V. Exa. nos queira comunicar a determinante que levou aqueles funcionários à referida apropriação, pela primeira vez verificada na História das Artes Plásticas deste País, para que,
3.       por nossa parte, possamos informar os seus autores das razões porque se viram privados de continuar a exposição. a) Comissão Organizadora»[29]

Também esta exposição/requerimento da CO ficaria sem resposta do ministro que, no entanto, oficiaria à PIDE  com um muito elucidativo e arrogante despacho ministerial:

«Prefiro não tomar conhecimento da responsabilidade que os signatários se arrogam na organização da exposição em referência. Não lhes reconheço, portanto, qualquer direito a receberem os quadros, e muito menos a pedirem explicações.
Renovo a indicação já dada de os quadros serem entregues aos seus proprietários, com a proibição de voltarem a ser expostos.
Comunique-se-lhes novamente, marcando prazo curto para a retirada desses quadros, findo o qual lhes será dado o merecido destino.
a)      A. Cancella de Abreu – 17.6.47»[30]
Despacho do Ministro ao oficio da CO oficializado para a PIDE


Após um processo demorado em que se cruzaram vários ofícios entre as entidades envolvidas, as obras de arte acabariam por ser entregues, na rua António Maria Cardoso, não aos autores ou à CO mas ao chefe da Secretaria da SNBA – Domingos Álvares da Cunha –, depois de devidamente creditado pelo presidente da direcção:
«aos 23 dias do mês de Junho de 1947, nesta cidade e sede da Pide, onde se encontrava presente o sr. José Maria de Amaral Leitão Bernardino, chefe de brigada desta polícia, comigo João Prudêncio Gomes, dactilógrafo, servindo de escrivão»[31]

Só a 3 de Julho a CO da 2ª EGAP acusaria o recebimento dos quadros, à direcção da SNBA.

Para além dos autores dos quadros, também os membros da Comissão Organizadora voltariam mais uma vez a serem individualmente chamados à PIDE a fim de explicarem o que tinham querido dizer com o parágrafo: – «só lamentamos que a entrega dos quadros não tenha, realmente, constituído o termo desta humilhação inútil e sem sentido imposta aos artistas, pois os autores dos quadros apreendidos têm sido chamados a interrogatórios pela Pide»”  – que constava do ofício enviado à direcção da SNBA e pelo chefe da secretaria entregue à polícia politica.
Tudo lhes servia de pretexto para intimidar os artistas e os seus representantes. 

O processo teria o seu epílogo com o relatório final da PIDE, datado de 26 de Julho de 1947, onde se reconhecia que «não foi possível, segundo o parecer técnico dos serviços desta polícia, identificar (…) o autor da publicação do anúncio (…)  porquanto a espécie de letra usada tal não permite.»[32]
A contestação e a resistência também se faziam por pequenos-grandes gestos como este inusitado e provocatório anúncio num jornal diário que ridicularizou o regime e a polícia que o sustentava.

A 3ª EGAP realizar-se-ia em Maio do ano seguinte. Mas uma exigência de a mesma ser visitada oficialmente antes da inauguração provocou uma cisão por parte dos surrealistas que decidiram retirar os seus quadros já depois da exposição montada e do catálogo pronto abrindo a mesma com os correspondentes lugares vazios nas paredes.  Estava consumada a cisão desta frente oposicionista. Uma cisão feita em nome da liberdade de expressão mas que não deixou de ser bastante conveniente  para as «forças da ordem» salazaristas [33] que assim viram alcançado o grande objectivo de uma ruptura na frente democrática que desde o final da guerra se organizara e crescera em torno do MUD e da sua CEJAD (Comissão de Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos). Fora grande o susto mas podiam respirar de alívio: os artistas plásticos não voltariam a juntar-se.

Apesar de todos os condicionalismos as EGAP’s resistiram até 1956 totalizando dez edições num trabalho colectivo a que todos os anos aderiam novos expositores com diferentes experiências estéticas e empenhamento cívico, sendo possível, no cômputo geral das mesmas, e segundo a voz insuspeita de Rui Mário Gonçalves, afirmar que foi possível «mostrar 2.764 obras de 282 artistas entre os quais se encontravam numerosos arquitectos, marcados pela funcionalidade corbusiana» artistas que não só «activaram a SNBA» que se encontrava inanimada como  «retiraram ao SNI o lugar central da cena artística».[34] 
Também José Ernesto de Sousa estudou as dez Exposições Gerais de Artes Plásticas.  Reconhecendo que a  de 1953 é a «última em que o pintores realistas se apresentam num esforço de originalidade e invenção»  a síntese que faz na 10ª, em 1956, permite-lhe avaliar da importância dos últimos passos da nossa pintura, levando-o a afirmar que «Não só os pintores neo-realistas tinham provocado as mais graves perguntas sobre a universalidade da arte portuguesa depois dos futuristas; como tinham dinamizado todos os artistas independentes deste país, dando-lhes confiança em si próprios, ajudando a opor a uma «apagada e vil tristeza» aquela outra fórmula de Almada: «a alegria é a coisa mais séria que há». (José Ernesto de Sousa, A Pintura Portuguesa Neo-Realista (1943-1953), col. Arte Contemporânea, vol. 15, ARTIS, 1965, p. 8).

José Viana ainda colaborou em 1948 na 3ª EGAP com três aguarelas: nº 194, Maria do Céu; nº 195, A Sra Joana; nº 196, o «Brooklin»,  ao preço de 200$00 cada[35].
Mas não voltaria a expor nas EGAPs. Não por corte ideológico, como o atesta todo o seu percurso de cidadão interveniente, mas, muito provavelmente, por ter optado pela carreira teatral, só voltando à pintura nos últimos anos de vida. Mas bem podia (pode) afirmar, orgulhoso, tal como o fez na entrevista a Lauro António, em 1997, que o seu  «primeiro quadro, (…) foi eficaz, (…) porque o que pretendia era chamar a atenção das pessoas para os problemas sociais e políticos e conseguiu».[36]

Julho de 2013
Júlia Coutinho
Investigadora

Nota:  este texto foi publicado por ocasião da exposição retrospectiva de José Viana na Casa da Cultura, em Cascais, Julho de 2013.

[1] Exposição Geral de Artes Plásticas. Num total de dez, realizaram-se entre 1946-1956, na Sociedade Nacional de Belas Artes,(SNBA), com interregno em 1952, devido a esta instituição ter sido encerrada pelas autoridades.
[2] Dec-Lei 27.003 (14 Set) obrigou à declaração de estar integrado na ordem social estabelecida pela Constituição de 1933, com «activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas», aos funcionário públicos ou nomeados para cargos públicos.
[3] Cf. prefácio do Catálogo da 1ª Exposição Geral de Artes Plásticas, SNBA, Julho, 1946, p. 3-4
[4] Mário Dionísio, Para a História da Resistência em Portugal, in Diário de Notícias, 5 Março 1975, p. 7-8
[5] Ex- SPN (Secretariado de Propaganda Nacional) criado pelo Dec-Lei 23.054 (25 Set 1933).  Passou a SNI (Secretariado Nacional de Informação ) em 1944 (11 Abril). O seu director, António Ferro,  mereceu toda a confiança de Salazar entre 1933-1949.  Ali foi propagada  a «política do espírito»  com os Salões de Arte Moderna (1935-1951), única oportunidade de os artistas exporem, e a instituição de prémios diversos.  Arregimentavam-se as elites culturais. Contra isso se rebelaram os artistas nas EGAP’s.
[6] Mário Dionísio, op cit. Foi a quebra desta premissa que levou Mário Dionísio a abandonar as EGAP’s em 1953 por considerar o pacto quebrado quando alguns artistas aceitaram participar na II Bienal de S. Paulo, ainda que não directamente através do SNI.
[7] Cf. Prefácio do Catálogo da 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, Maio, 1947
[8] A partir do MUD, foi criado o MUD Juvenil em 28 Junho 1946. Só terminou com o processo da PIDE 5/57, no Porto.
[9] Foi o caso de Júlio Pomar, dirigente do MUD Juvenil. Um quadro que enviara – O Almoço do Trolha -,  estava inacabado. Como inacabados ficariam os murais que pintara no Cinema Batalha, no Porto, e seriam cobertos de cal pelas autoridades.  Não gostaram dos motivos de festejos do povo, nas ruas. Também estava preso Francisco Castro Rodrigues, finalista de arquitectura, membro do MUD Juvenil  e da direcção da SNBA (1º Secretário).
[10] Casos da Tapeçaria e da Gravura, por exemplo. Note-se que o núcleo duro das EGAP’s foi formar, após estas,  a GRAVURA, Sociedade Cooperativa dos Gravadores Portugueses, em 1956, que veio democratizar as artes plásticas.  
[11] Cf. Mário Dionísio, op. cit.
[12] PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) foi criada 1945 pelo Dec-Lei 35.046 (22 Set) sucedendo à  PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) criada em 1933 pelo Dec-Lei 22.992 (29 Agosto) resultante da fusão da Polícia de Defesa Política e Social e da Polícia Internacional num só organismo, directamente subordinado ao Ministério do Interior.
[13] Cf. Catálogo José Viana, 50 anos de Carreira, (org. de Lauro António),Câmara Municipal de Oeiras, 1997, p. 33-34
[14] Cf. Fernando de Pamplona, Belas-Artes,Malas-Artes,  in Diário da Manhã de 7.Maio.1947, p. 3-5
[15] Cf. Nota breve na 1ª pág., lado inferior esquerdo, do Diário da Manhã de 9.Maio.1947.
[16] Ansiedade, de Nuno Tavares, Pintura, de Mário Dionísio e Composição (Força), de Viana Dionísio.
[17] Cf. Diário da Manhã de 9.Maio.1947, p. 1
[18] Cf. Mário Dionísio, op. cit..  (dizer-se António Maria Cardoso era dizer-se PIDE, dado ser ali a sede daquela polícia política).
[19] Esta foi a versão mitificada que chegou aos nossos dias. O próprio Mário Dionísio a repete no artigo que estamos a citar, do DN de 1975. Era uma «bandeira»  dizer-se que  «às 13 horas do dia 13 de Maio, a PIDE levou 13 quadros neo-realistas», até porque na mesma exposição estavam os surrealistas e os naturalistas, cujas obras não incomodaram as autoridades.
[20] Cf. Auto de Busca e Apreensão do Processo ANTT-PIDE/DGS – SC-494/47-4925.
[21] Cf. processo ANTT-PIDE/DGS – SC-494/47-4925, doc. 1-2
[22] A Comissão Organizadora (CO) era formada pelos membros da CEJAD: Francisco Keil do Amaral, Arq; Roberto Araújo, Pintor; Arlindo Vicente, Pintor; e José de Almeida Segurado, Arqt.
[23] Cf. Processo  ANTT-PIDE/DGS – SC-494/47-4925, doc. 4 ft/v.
[24] Livro de Actas da Direcção da SNBA, Acta nº 32, de 14 de Maio de 1947
[25] Cf. Processo ANTT-PIDE/DGS – SC-494/47-4925,doc. 5
[26] Idem,  doc. 6
[27] Idem,  doc. 55
[28] Idem,  doc. 32
[29] Cf. Processo ANTT-PIDE/DGS – SC-494/47-4925,doc. 16, ft/v.
[30] Idem, ibidem
[31] Idem, doc. 13
[32] Idem,  doc. 57 ft/v.
[33] O pintor António Domingues compreendeu isso mesmo e regressou às EGAP’s  e ao Neo-Realismo. O mesmo aconteceu a Alexandre O'Neill.
[34] Cf. Rui Mário Gonçalves, De 1945 à Actualidade, in História da Arte em Portugal, Alfa, Lisboa, p.51-52
[35] Cf. Catálogo da 3ª Exposição Geral de Artes Plásticas, SNBA, Maio, 1948, p. 19
[36] Cf. Catálogo José Viana, 50 anos de Carreira, (org. de Lauro António),Câmara Municipal de Oeiras, 1997, p. 33-34

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