terça-feira, junho 13, 2006

Até Sempre, Álvaro Cunhal



Há um ano desaparecia Álvaro Cunhal. Um Homem e um Político excepcionais.

Assinalando este dia, deixo-vos uma carta, inédita, que descobri nos arquivos da PIDE/DGS, escrita para sua irmã, Maria Eugénia, em 1966, aquando das mortes do cunhado, o médico Fernando Medina, e do pai, o advogado Avelino Cunhal.

Apreendida pela Pide, a carta nunca chegaria ao destino. Ela revela-nos um homem amargurado e preocupado com a irmã e os sobrinhos e com a mãe, cega. Com a sua família. Que adorava.

Uma faceta praticamente desconhecida de Alvaro Cunhal. Mas que existia. E aqui se revela.

Júlia Coutinho


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«Moscovo, 1 de Março de 1966*

Minha muito querida irmã:

Terríveis notícias me chegaram nos últimos tempos: o suicídio do Fernando, a Morte do Pai. Que te posso dizer das lágrimas que chorei e choro, e de todas as razões delas, e das mil inquietações para que não tenho resposta? Por via indirecta, recebi as duas notícias. Secas, sem qualquer referência a mais. Nada mais sei, a não ser o que suponho.

A grande distância, o não ter visto mais o Pai, o não ter podido dizer-lhe um último adeus e uma última palavra, são dores irreparáveis. Sofreste mais de perto, querida irmã, mas não isto. E o que ele terá sofrido. Esforçado e paciente decerto, mas decerto também inconformado e profundamente triste. Perdemos a pessoa que mais nos amava, que melhor nos compreendia e a quem devemos elevadas lições de honestidade e isenção pessoal. Por isso não perdemos tudo. Apenas lamento, se ele o não sabia.

Chorando os mortos, penso nos vivos, querida, muito querida irmã. Penso em ti, na mãe cega, nos teus filhos, na vossa situação. Que posso eu fazer por vós? Eu sei (e é necessário que tu saibas também) que algo posso fazer. Continuo a ser o teu irmão infinitamento amigo, o teu irmão de sempre. Conta comigo, querida irmã.

À nossa pobre mãe, diz que vos escrevi algumas linhas, que sofro por não vos ter dado o muito que gostaria de dar-vos e que por isso me perdõem, se é coisa de perdoar. Diz-lhe mais, atribuindo-me a mim, todas aquelas palavras que entendas que a podem auxiliar. Do coração to agradeço, a ti a quem coube o leme de tão amargas situações.

Neste momento, quero dizer-te alguma coisa mais: olha para o futuro! Não descreias da vida e da alegria! Tem forças para recomeçar, se de recomeçar se trata!

Peço-te, querida irmã, que procures escrever-me algumas palavras, se não do que se passou (por te ser demasiado penoso) ao menos do que se passa. Eu não sei se esta carta te chegará às mãos, dada a pessoa que a escreve, dado o país de onde vai e dado que nem certo estou dos endereços para onde a envio (que em tempos me disseram ser o teu e o do Pai). Tenho porém uma certa esperança em que a venhas a receber. E, se a receberes, tenta escrever-me. A direcção é simples:


URSS - Moscovo 132
Hotel
Álvaro Cunhal

É o bastante e, tratando-se como se trata, de questões familiares e questões desta natureza, pode ser que a tua carta me chegue.

Querida, muito querida irmã: um grande, grande abraço, aquele que gostaria de poder dar-te neste momento de profunda tristeza.

Repito ainda: não desanimes, olha em frente, olha para a vida e confia.

Com a imensa ternura do teu irmão

Álvaro»


*Arquivos da PIDE/DGS - ANTT, processo E/GT 2673 - NT 1479, doc. 4.



18 comentários:

MGomes disse...

Uma bonita homenagem a um Álvaro Cunhal que concerteza perdurará na memória de quem o admirou durante toda a sua vida de combate por um mundo diferente e melhor.

Unknown disse...

Como dizes é uma faceta pouco ou nada conhecida de Álvaro Cunhal que aqui revelas. Boa homenagem!

Manuel Veiga disse...

E fizeste muito bem em revelar. Um documento impressionante e comovente...

e de grande dignidade!

bem hajas!

wind disse...

Bonita e emocionante a carta que nos revelas de Álvaro Cunhal, o seu lado pessoal, de facto o menos conhecido.
Obrigada por isso e continua com este blog, que tão boas coisas nos dá:)
beijos

wind disse...

Desculpa, esqueci de escrever que foi uma bela e original homenagem.

Ana Loura disse...

Querida Júlia

Esta carta revela, de facto, um homem triste perante o desgosto da perca dos que ama, mas sempre cheio de esperança na vida!!

É , também, um documento que demonstra a insensibilidade de um regime insensível às questões familiares dos seus cidadãos, ainda que de opiniões contrárias ao regime. É bom que se espalhem estes textos numa altura em que os neonazis pôem as manguinhas de fora, em que está demonstrado que fomos condescendentes com a direita nestes 30 anos de Democracia.

Quero deixar em ti, o abraço que não dei ao nosso Camarada e amigo comum, Fernando. Soube da sua morte ao ler os comentários no Fraternidade.

Honramos a sus memória não deixando cair os nossos blogs

Beijinho
Ana

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Grato pela informação que fazes chegar através de emails e do teu blog.
Homenagem merecida a um Homem que deixou bem marcada a sua passagem por este mundo. Exemplo alto de lutador.
Esta carta mostra também quanto deve ter sofrido na ausência da sua Pátria e dos seus Familiares e Amigos.

Jamais será esquecido!

Anónimo disse...

Um Homem com H maiúsculo.
Portugal não o esquecerá, tenho a certeza disso.
Uma homenagem mais que merecida a quem toda a sua vida lutou pelos trabalhadores e pela sociedade em geral para pudessem viver de uma forma justa.

Manel do Montado disse...

Apesar de não partilhar do seu ideal político, na totalidade, o seu sentido de lealdade aos seus princípios e ideais merecem que me curve perante a sua memória, assim como perante a estatura de líder que teve.
Foi seguramente o líder político português que mais respeito me mereceu pelo acima exposto e principalmente pela coragem de ter trocado uma vida cómoda pela de militante clandestino, sofrendo na pele às mãos dos esbirros da PIDE, até á sua fuga.
Com o tempo, os maçons e os neo-liberais branquearão a verdadeira história dos clandestinos do PCP e de outros, que se “transformaram” ao o 25 de Abril e até mudaram confortável mente de Partido.
O meu mais profundo respeito pela memória do insigne líder e ilustre colega, Dr. Álvaro Barreirinhas Cunhal.

Anónimo disse...

O meu abraço a todos quantos o estimaram e admiraram.

O meu abraço a todos quantos com ele conviveram e lutaram.

O meu abraço para ti por trazeres para a memória colectiva a humanidade deste homem português.

O meu abraço por te haveres lembrado de mim para este abraço.

Anónimo disse...

Um testemunho que nos dá uma visão diferente e concerteza complementar da personalidade de um homem excepcional. Alguém que fez a diferença e honrou isto de "ser político". Nunca poderá ser esquecido.
Um beijo para ti.

Anónimo disse...

Esta carta, que nunca tinha lido, revela bem o carácter desse grande homem. É com o lado humano dos grandes homens e da sua imensa sensibilidade que devia fazer-se história e não somente a linguagem fria das efemérides.

Obrigado
JG

El Navegante disse...

Julia:
aínda sem conhecer iste grande homem da tua terra, acho que vocé na tua luta per la verdade , fiço lo milagro que finalmente issa carta chease a seu destino.
Pode ficar muito contente, na memoria de Alvaro, onde esteja, vc fica muito querida agora.
Um beijo, e parabénms pelo seu coraçao.

Maria Carvalho disse...

Embora não faça parte do Partido de Álvaro Cunhal, não me impede de o considerar um Homem coerente, que lutou pelos seus ideais e que merece todo o meu respeito. Faz parte da História e deverá ser lembrado como ser humano que tocou alguns de nós. Sobretudo pela coerência, pelo não desistir da luta e por tudo aquilo que poderemos aprender com ele. Beijos, Júlia.

contradicoes disse...

Concordo com a opinião da Paula Raposo. Achei que Alvaro Cunhal foi talvez dos únicos políticos que demonstrou uma coerência impar e assim morreu. E também era por isso que eu o admirava para além obviamente de o considerar um lutador convicto contra o fascismo. E estou certo que jamais se apagará da nossa memória a sua figura, independentemente
de nos identificarmos ou não com o seu ideário político. Com um abraço do Raul

Anónimo disse...

Poucas acções repugnarão tanto como o acto vil de quem, lendo estas palavras plangentes, arrecadou a carta e a subtraiu ao destinatário.

Poucas palavras serão tão belas como as desta carta. Se a Júlia não se importa, vou transcrevê-las e divulgálas também.

Obrigada.

Anónimo disse...

Perdão: divulgá-las

Jorge P. Guedes disse...

Cunhal foi o último português a defender ideias próprias até ao fim.
Concordemos ou não com ele, a Álvaro Cunhal há que reconhecer a verticalidade de um ideal perseguido sem desvios nem espinhas curvadas.
A carta é um exemplo de que Cunhal era um ser humano corajoso e sofredor.
O destino que os esbirros lhe deram demonstra aquilo que nunca mais deverá suceder no nosso país ou noutra parte qualquer.
Foi-se o último bastião da luta por um mundo melhor.
Mais pobre ficou, este país de acéfalos carreiristas!
Jorge G. http://osinodaaldeia.blogspot.com porque avisar é preciso