
O meu primeiro réveillon triste
A década de 60 mal começara e, em Paris, eram ainda poucos os exilados políticos – uma dezena, se tanto.
A década de 60 mal começara e, em Paris, eram ainda poucos os exilados políticos – uma dezena, se tanto.
Eu e o Alfredo Noales tínhamos acabado de chegar e o Inverno deixava-nos infelizes, de ossos tão gelados quanto a alma, porque as nossas roupas não eram adequadas ao frio daquelas temperaturas negativas. Entrámos no “Café du Luxembourg”, sacudimos a neve dos casacos, consolados pelo quentinho do interior, e abraçámos os amigos com quem íamos jantar. Uma ceia simples de fim de ano. As vidraças do café – pintadas com dizeres da época, palavras muito coloridas, sinos e azevinho – lembravam-nos que agora os natais e as festas Bonnes Fêtes! iriam ser assim, em francês. Comovíamo-nos e disfarçávamos. Todos. Era melhor que me fosse habituando: de futuro, a nossa família no dia-a-dia seriam aquelas pessoas que estavam ali – a Maria Padez e o Jacques Kotzky, o António José Saraiva e a Maria Lamas. A Stella e o Fernando Piteira Santos ficavam pouco tempo, estavam de passagem, a caminho de Argel. O Lopes Cardoso e a Fernanda também não ficariam em Paris. Companheiros da luta anti-fascista em Portugal, cuja idade rondava os quarenta, cinquenta anos, pareciam-me, no entanto, gente idosa (Espantoso!)…
Estávamos todos muito aperaltados, fiéis à solenidade da noite – nós, mulheres, elegantes mas simples, eles de fato e gravata – e conversávamos sérios (ou tristes) acerca de acontecimentos negros do mundo. Nos meus vinte e poucos anos, quase criança, eu chorava para dentro – de saudades. Só António José Saraiva tinha um aspecto leve – estava de camisola, palrava contente, parecendo já adaptado ao exílio. Fazia anos nesse dia 31, eu tinha-lhe oferecido um cachecol amarelo e ele agradecia-mo com uma narrativa colorida, marcante, que desembocara na “Comuna de Paris”. Como depois, no futuro, ensinava-me História sem o saber, ou sem parecer que o fazia. Hoje, é a Serge Reggiani que roubo as palavras com que o recordo nesse jantar.
“Et voilà qu´il fit un rude hiver / Cent congestions en fait-divers / Volets clos, on claquait des dents / même dans les beaux arrondissements / Et personne n´osait plus, le soir, / affronter la neige des boulevards! /
Alors…
Cent loups
Ouh! Ouh! Ouh!
Cent loups sont entrés dans Paris…”
Falávamos agora de França, para não falarmos de Portugal nessa noite.
Na minha frente, o Alfredo não me perdia de vista, companheiro protector, amante. E eu devolvia-lhe os olhares, feliz por instantes. Como nos versos da canção de Juliette Greco:
“ J´arrive, j´arrive /Mais qu´est-ce que j´aurais bien aimé / encore une fois remplir d´étoiles un corps qui tremble et tomber morte/ brulé d´amour, le coeur en cendres / J´arrive, j´arrive”.
O exílio começava ali.
Helena Pato
Dez.2009
Estávamos todos muito aperaltados, fiéis à solenidade da noite – nós, mulheres, elegantes mas simples, eles de fato e gravata – e conversávamos sérios (ou tristes) acerca de acontecimentos negros do mundo. Nos meus vinte e poucos anos, quase criança, eu chorava para dentro – de saudades. Só António José Saraiva tinha um aspecto leve – estava de camisola, palrava contente, parecendo já adaptado ao exílio. Fazia anos nesse dia 31, eu tinha-lhe oferecido um cachecol amarelo e ele agradecia-mo com uma narrativa colorida, marcante, que desembocara na “Comuna de Paris”. Como depois, no futuro, ensinava-me História sem o saber, ou sem parecer que o fazia. Hoje, é a Serge Reggiani que roubo as palavras com que o recordo nesse jantar.
“Et voilà qu´il fit un rude hiver / Cent congestions en fait-divers / Volets clos, on claquait des dents / même dans les beaux arrondissements / Et personne n´osait plus, le soir, / affronter la neige des boulevards! /
Alors…
Cent loups
Ouh! Ouh! Ouh!
Cent loups sont entrés dans Paris…”
Falávamos agora de França, para não falarmos de Portugal nessa noite.
Na minha frente, o Alfredo não me perdia de vista, companheiro protector, amante. E eu devolvia-lhe os olhares, feliz por instantes. Como nos versos da canção de Juliette Greco:
“ J´arrive, j´arrive /Mais qu´est-ce que j´aurais bien aimé / encore une fois remplir d´étoiles un corps qui tremble et tomber morte/ brulé d´amour, le coeur en cendres / J´arrive, j´arrive”.
O exílio começava ali.
Helena Pato
Dez.2009
Notas Biográficas:
Helena Pato e Alfredo Noales conheceram-se na Faculdade de Ciências de Lisboa, onde ambos estudavam, no final dos anos 50. Casaram em 1960. Noales, então jornalista da República, foi obrigado a fugir em Outubro de 62, na sequência das prisões que ocorreram após as greves estudantis e o 1º de Maio de 62. Helena juntou-se-lhe mais tarde.
Noales adoeceu com cancro, em 1964, e só foi autorizado pela PIDE a regressar «quando os médicos que o tratavam declarassem por escrito que tinha apenas um mês de vida». Assim foi: chegaram a 3 de Novembro de 65, a PIDE estava à espera dele no aeroporto, foi buscá-lo às escadas do avião e levou-o para interrogatório em cadeira de rodas. Sem qualquer respeito. Morreu a 2 de Dezembro de 65. Helena prosseguiu na luta clandestina até à Revolução de Abril e conheceu os calabouços da PIDE. Professora de Matemática, muito a ela se deve a fundação do Sindicato dos Professores, bem como o MDM - Movimento Democrático de Mulheres, uma velha ambição de Maria Lamas com quem conviveu no exílio.
Helena Pato recordou tudo isto em «Saudações, Flausinas, Moedas e Simones», um livro editado pela Campo das Letras, em 2006.
Estas e outras histórias da luta e da resistência antifascistas têm sido por si testemunhadas no blog Caminhos da Memória.
Aqui fica a minha homenagem.