terça-feira, abril 22, 2008

Faleceu o Chico Martins Rodrigues (1927-2008)


Sabiamo-lo mal. Mesmo assim a sua partida definitiva surpreendeu-nos. Foi esta madrugada, pelas 2 horas. O seu corpo será cremado amanhã, dia 23 de Abril, pelas 13,30 horas, no Alto de São João.
Dele guardo a lembrança de um homem solidário, sempre pronto a abraçar as causas em que acreditava. Morreu como viveu: lúcido e apenas com aqueles que ele próprio escolheu para o acompanharem. Foi um dos que mais sofreu às mãos da Pide. E não só sofreu como viu a sua família perseguida e destruida.
Há dois anos deu-me uma entrevista. Admirava-o como Resistente e homem de acção, mas cheguei a ele por caminhos ínvios. Ou seja, o Chico provinha de uma família numerosa e era irmão de dois artistas plásticos: o João Rodrigues e o José Leonel Martins Rodrigues.
O João Rodrigues, irmão mais novo, surrealista, matou-se em 1967 e dele ficaram desenhos dispersos que o amigo Mário Cesariny de Vasconcelos juntou num livro há muito esgotado.
A minha curiosidade ia para o José Leonel do qual ninguém mais ouvira falar, e alguns afiançavam ter falecido já. Mas não. O José Leonel ainda vive. Disse-me o Chico Martins Rodrigues, no decurso dessa tarde em que conversámos no seu velho escritório ali à Rua dos Açores, no Arco Cego.
Artista talentoso, José Leonel frequentou a António Arroio no inicio dos anos 40 (pertencia ao grupo do Café Herminius) e, quando se preparava para entrar na Escola de Belas Artes, foi apanhado pela Pide numa noite em Campo de Ourique onde, com outro, fazia pichagens nas paredes em vésperas do 1º de Maio de 1946.
O companheiro foi solto quase de imediato, ele ficou encarcerado. E porquê? Porque escrevera: "Morte a Salazar" e isso era um crime gravíssimo. Indiciava-o como muito capaz de matar o chefe do Estado ! A Pide tirou mesmo uma fotografia daqueles dizeres como prova do grave delito.
Foi muito maltratado pelos esbirros da Pide. De tal forma que endoideceu e recolheu ao Julio de Matos. Saíu mais tarde, mediante caução, mas nunca mais foi o mesmo. Nunca mais se dedicou à arte. Nunca mais conseguiu conviver com ninguém. Sempre assustado, sempre com medo, vendo polícias por todo o lado, desconfiando da propria sombra. Isolou-se e fechou-se num mutismo de que nunca mais se libertou.
Um dia desapareceu. Fugiu da própria família. Nunca ninguém o conseguiu encontrar. Já após a morte dos pais e de praticamente todos os irmãos, apareceu. Sem mais palavras. Creio que o irmão o foi buscar. E vivia com o Chico que tratou dele até ao fim.
Foi o António Domingues, que fora seu colega na Antonio Arroio, quem me alertou para o drama do José Leonel. Uma vítima da Pide de quem ninguém fala. Que ninguém conhece. De que não ficaram sequer registos gráficos. Apenas um eventual processo nos arquivos da Pide, como tantos outros.
Tal como existe um Monumento ao Soldado Desconhecido pela impossibilidade de se identificarem todos os que morreram nas frentes da guerra, dever-se-ia fazer um Memorial às Vitimas da Pide, tantas elas foram e, na sua maioria, desconhecidas.
Aqui fica a minha homenagem no dia em que partiu mais um guerreiro.

12 comentários:

Anónimo disse...

Pode dizer-se que "dos esquecidos não reza a História". Pelos vistos o caso do Xico Martins é bem exemplo disso ... uma história com um final triste aqui resgatada através desta sentida homenagem póstuma (provelmente única) da autoria n/ amiga Julia, também amiga dos oprimidos, injustiçados e esquecidos. Isto é que é serviço público sim senhora!

bissaide disse...

Justa homenagem, sem dúvida! Tantos e tantos que ficaram na sombra e a quem este país pouco ou nada tem ligado... isto em todas as áreas...

Anónimo disse...

Muita gente tentou, em vão, apagar o Chico Martins da História. A começar - há que dizê-lo sem medo, embora com dor - pelo PCP que, no livro oficial sobre a fuga de Peniche, omite cautelosamente o seu nome da lista onde figuram (e muito justamente) todos os outros. Para não ter que referir o perigoso dissidente, o PC optou pela fórmula gerneralista "entre outros camaradas" - quando ele era o único outro camarada que faltava... Lembro-me de como nos rimos os dois com este episódio quando, há já uma mão-cheia de anos, fui com ele a Peniche relembrar essa fuga mítica para um documentário de televisão. E recordo agora esse pormenor apenas porque, como ele diria, não se pode apagar a memória. Até sempre, companheiro.

Anónimo disse...

podia para com o spam, por favor?

Maria disse...

Fica o meu respeito pelo anti-fascista, que foi.

Beijo, Júlia

F. Penim Redondo disse...

Belo post.
Que venham muitos mais.

Paula Raposo disse...

Um memorial aos esquecidos vítimas da Pide, acho muito bem. Que descanse em paz o Xico. Beijos para ti.

Dad disse...

É assim o render dos heróis...
Graças a ti conheci o drama deste homem.
Esperemos que nunca mais tais coisas aconteçam em Portugal.

Tempos horríveis esses.

Beijinhos Júlia e ainda bem que voltaste ao Blog.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Xico Martins, o camarada Campos, referência incontornável da luta anti-fascista mas, também, marco determinante para tantos daqueles que não alinharam em «diapasões institucionais» dessa luta.

Não fora esse terrível tique das esquerdas de cultivarem divergências e seria hoje um dia de luto nacional.

É o que, lamentavelmente, me ocorre dizer.

Não estarei em Lisboa a tempo do funeral. Mas lá estarei em pensamento. E, nele, guardarei o exemplo.

Beijos, Júlia. Que a voz não te esmoreça.

Conceição Paulino disse...

Bom regresso Júlia.
Não pelo acontecido mas pela forma como dele falas. Se não o conheci pessoalmente o meurespeito pelos lutadores como ele torna-o do meu dia na dia. Estou convosco aí. Mas acredito que outros e outras guerreiras nascem todos os dias.
Bj
Luz e paz

Anónimo disse...

Olá! Aproveitando o mail da Júlia para ver o seu blog,
vejam também esta "causa":
www.alqaeda-lafoes.blogspot.com

alvega disse...

Se me permitem a opinião, de Chico Martins ficará sobretudo para a história 'Luta pacífica e luta armada no nosso movimento', a fundamentação teórica para a separação/cisão maoísta em Portugal, e para a criação da FAP/CMLP e sobretudo da UEC(m-l), feita antes da própria UEC, if memory serves.
Aquela viria a ter uma influência muito considerável na radicalização do movimento estudantil entre 70 e 74, sobretudo em Lisboa -- Agronomia, Ciências, Técnico e nos liceus, principalmente -- visível na reacção ao assassinato de Ribeiro Santos (a EDE/MRPP só era realmente forte em Direito...) e portanto na consciencialização política dos oficiais do Q.C.
Não é preciso ser um génio para deduzir que isso acabaria por ter algum tipo de efeito nos oficiais do Q.P. também.

Agora uma opinão muito particular: a nível pessoal Martins Rodrigues nunca conseguiu superar o facto de ele ter falado na prisão e Cunhal não.

E se os torcionários o quiserem, toda a gente fala sob tortura... ou morre. Os comunistas (ao contrário dos diversos serviços secretos, por exemplo...) esperavam isso dos seus militantes, mas como é natural, na hora prória nem toda a gente é capaz.

R.I.P. FMR.