domingo, agosto 06, 2006

Para Memória Futura



Tomás Xavier de Figueiredo
(1930-1994)


Canção Cinco e Dez

Às cinco e dez da madrugada tudo é já claro.
À lucidez do escuro junta-se o Sol que nasce.
Não adianta ver quando ver é fazer
O fazer precisa que muitos vejam
E leva isso sempre o tempo que leva.
E diz-se então o mesmo muitas vezes
De modos cada vez mais próximos de coisas mais distantes
Pois se busca o nexo que tornará simples o que é claro.
Mas nada se adianta o tempo
Se é preciso esperar:
Só se pode ir rindo.
Mas Senhores, já agora,
Se desta loucura em que me afundo
Mas eu sei,
E que da vossa é feita,
Mas fingis não saber
Fingindo sempre que é doutros que se fala,
Alguma ideia vos der jeito,
Fazei favor de a usar
Sem pagar royalties nem direitos:
As ideias são livres e anónimas como a água e o ar.
E se vos desagradam
Usai o remédio do tempo
E fazei por esquecer,
Porque não quero dar conselhos a ninguém
E gostaria apenas que me pagassem em moeda igual.
Deixai-me sossegado
E ficai sossegados
Pois nenhum de nós dura muito tempo.
Os erros são o estrume da história
Mas a água e o ar são o lugar das flores e dos frutos
E o estrume só é útil na terra.
Perdoai aos que vos enganaram
Para que vos perdoem aqueles que vós próprios enganastes.
Os que se seguem nada têm a ver com os nossos enganos mútuos
E poderão voltar a usar as nossas palavras certas
Do tempo em que estavam exactas.
Mas só quando estivermos já esquecidos,
Pois é esse o preço da cegueira voluntária.


(in Rumo a Cacilhas, Sempre!, 1991, p. 123)

11 comentários:

Maria Carvalho disse...

Muito bem! 'O estrume só é útil na terra'. Beijos.

Armando Rocheteau disse...

Olá Júlia. Tenho cá vindo. Parabéns pelo blogue e abraço.

Manel do Montado disse...

(...)Os erros são o estrume da história
Mas a água e o ar são o lugar das flores e dos frutos
E o estrume só é útil na terra.(...)

Amiga, muito obrigada pela partilha da memória comum que alguns tenta obstruir e obliterar.
Beijo...onde quer que estejas.

wind disse...

Este poema não se comenta, ele próprio diz tudo.
beijos

El Navegante disse...

Um gosto muito delicado para escolher um poema de tanta profunidade, Julia.
ärabéns por ter sempre issa cualidade a la hora de fazer selesçoes.
Um beijo.

Anónimo disse...

Que belo e lúcido poema!

Dad disse...

Fantástico poema! Obrigada pela partilha!

Beijinho,

El Navegante disse...

Surpresas no barco, feitas con tudo meu coraçao.
Beijao

Kalinka disse...

OLÁ JÚLIA

Que belo poema.
Parabéns pela escolha.

GOSTEI DE:
As ideias são livres e anónimas como a àgua e o ar...
Usai o remédio do tempo,
E fazei por esquecer...

Ah, isso devia ser mais fácil de fazer do que de dizer, pois como eu gostaria de esquecer, esquecer.
Beijo-te com carinho.

antónio m p disse...

Júlia, que surpresa! O teu blogue está monumental. Há muito tempo que eu não passava por cá. As meninas do sótão é que não há meio de fazerem uma dietazinha, hehe.
amp

David Reis disse...

Por saudade procurei o nome de um amigo e passados 15 anos encontro-o, inesperadamente vivo fora das minhas recordações.

Não sei quem és Júlia, mas sei que gosto de ti... vou voltar...

Um beijo