Em Dezembro de 1962 o Capitão João Varela Gomes estava detido na cadeia do Aljube, às ordens da PIDE, por ter participado no Golpe de Beja. Também sua mulher, Maria Eugénia, se encontrava na prisão de Caxias, acusada de cumplicidade.
Era o primeiro Natal que passavam separados e longe dos filhos, o Paulo, o João António, a Maria Eugénia e a Maria da Luz, de 10, 9, 7 e 5 anos, respectivamente.
A carta que se segue foi escrita por um pai dilacerado (por vezes nem lhes era permitido um abraço) mas apostado em incutir nos filhos os valores da coragem, da responsabilidade, do respeito, da liberdade e da solidariedade. Um esforço para que, apesar de tudo, as crianças sentissem a «presença e o amor dos pais» numa época particularmente difícil e sensível. Um documento comovente.
«... Acabei de escrever aos filhos a carta de Natal. É mais a festa das crianças que dos papás. Que continuem felizes. Calculo que vais ter uns momentos, ou dias, de angústia e tristeza. Há que reagir, paciência» (carta para a mulher)
Lisboa, 21 de Dezembro de 1962
Meus queridos filhos,
Lisboa, 21 de Dezembro de 1962
Meus queridos filhos,
O pai não queria, nesta altura do Natal, deixar de vos dizer quanto pensa nos seus quatro filhos e quanto deseja que decorram com alegria estes dias de festa. São festas para os meninos pequenos, Boas Festas para todas as crianças deste mundo, mesmo para aquelas, pobrezinhas e infelizes, que são esquecidas durante todo o resto do ano. Não é o vosso caso, meus filhos, que têm o Avô e os Tios para cuidarem de vocês, e o Pai e a Mãe Gena para vos acompanharem em pensamento, dia por dia, dos 365 que conta o ano.
Conhecem a história do nascimento do Menino Jesus, num curral de gado, porque o Pai e a Mãe (José e Maria) estavam a ser perseguidos, por um rei mau - Herodes - que era quem mandava na terra deles.
Pois José e Maria tiveram que fugir para outro país - o Egipto - e foi no caminho que nasceu o filho deles. Nasceu numa ocasião de desgraça, de tristeza para a família, para todos os amigos e para todo o povo judeu. Quando tudo parecia perdido, nasce um menino, nasce com ele a esperança de melhores dias, de felicidade futura, de regresso a casa, duma nova Pátria sem nenhum Herodes. E, conta a história, que apareceram estrelas a brilhar e anjos a cantar e que desde os mais pobres - os pastores - até aos mais ricos - os reis Magos - todos se alegraram e confiaram. Até mesmo os animais - o burro e as vacas - olhavam para o menino como alguma coisa de precioso.
Ora bem, filhos, isto que sucedeu há 1962 anos, ensinou os homens a nunca desesperarem, a nunca se afundarem na tristeza, enquanto houver crianças, enquanto nascerem meninos que cresçam bons e valentes como vocês e de quem os mais velhos possam dizer, como diz daqui o Pai João e da outra cadeia a Mãe Gena: «os nossos filhos são o nosso orgulho; eles são a garantia que não vivemos em vão e que um mundo melhor se está a construir.»
Muito tempo se passou depois do nascimento do Menino Jesus; ele próprio, já homem, teve que morrer pelas suas ideias. Muita gente, como vocês sabem, toma-o ainda agora por Deus (na altura foram muito poucos: estava tudo com medo dos soldados romanos). A família lá de casa também acredita que foi Deus que nasceu quando nasceu o Menino Jesus. O Pai João e a Mãe Gena, como os meninos devem saber, apenas acreditam que nasceu com ele a esperança, morta e novamente renascida sempre que nasce um menino de bondade, um menino de coragem.
Para o Pai e para a Mãe Gena, os seus quatro filhos, são quatro Meninos Jesus; e, creio bem, que todos os pais pensam da mesma maneira em relação aos seus filhos.
Para o Pai e para a Mãe Gena, os seus quatro filhos, são quatro Meninos Jesus; e, creio bem, que todos os pais pensam da mesma maneira em relação aos seus filhos.
Tinha imaginado acabar a carta com uns conselhos, mas vou desistir. Eram pequenas recomendações sobre um ou outro ponto que me parece, daqui, precisarem de correcção. Os tios e as tias se encarregarão de vos dizer o que eu penso sober os estudos, as companhias, as birras e as fúrias, os cuidados com as vossas coisas, a necessidade de fazer poucos pedidos aí em casa e de darem pouco trabalho.
Sois muito pequenos e as vossas responsabilidades já são grandes; mas eu, que conheço os meus filhos, confio em todos vocês. Neste Natal, ao redor do presépio, pensai num menino que nasceu quase no meio da rua, cresceu pobre e fugido e se fez Homem tão superior aos outros, que o chamaram de Deus; e, à volta da árvore dos brinquedos, pensai em todos os outros meninos que precisam de ajuda para sairem da miséria e da ignorância.
Beijos de Feliz Natal para toda a miudagem aí de casa e saudades para os adultos do
Pai João»
João Varela Gomes, Tempo de Resistência, Ler Editora, 1980, pp. 167-169
Pai João»
João Varela Gomes, Tempo de Resistência, Ler Editora, 1980, pp. 167-169
NOTA: Na foto acima, Maria Eugenia Varela Gomes com os quatro filhos, no final dos anos cinquenta. Foto retirada daqui.
16 comentários:
Cara Julia
A leitura desta carta comoveu-me muito. Ela representa verdadeiramente o Natal.
Fico muito grato por no-la ter trazido.
Este seu blog é verdadeiramente admirável. Para que a memória nunca se perca.
Um Feliz Natal para si e todos os seus.
O meu sentido Bem-Haja!
fiquei muito comovida.
Obrigada
Boas festas
Bom seria que os meninos e os jovens de hoje lessem esta carta...
Que se capacitassem que outros meninos tiveram os pais presos para que eles hoje possam correr e fazer as suas diabruras.
Seria bom, mas como o homem é eximio emc fazer esquecer ou alterar a história a seu belo prazer, o mundo está sendo uma "maravilha" e os meninos de hoje pouco se interessam disso ou se continuaa a haver outros meninos para quem o Natal é uma miragem de luzes e de pão nos escaparates abastados...
Julia, como sempre, você é oportuna.
Este é o melhor postal de boas festas que poderia deixar aos seus leitores.
É bom que se saiba e você sabe dizê-lo!
Conheci o então Capitão Varela Gomes numa sessão da oposição nos anos sessenta no Teatro da Trindade, em Lisboa.
Nessa noite cheguei a casa comn uma carga de pancadaria no corpo...
Felizmente, consegui escapar à "rapaziada" da António Maria Cardoso...
Feliz Natal, Julia!
Já tinha lido esta carta ontem, em feed.
Voltei hoje, tu sabes porquê.
E não consigo comentar (como ontem saio emocionada...)
Um abraço forte
COMOVES-ME!!!!!
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beijo terno.íssimo.
Mesmo entre pessoas sinceramente de esquerda, há quem não concorde com algumas actuações do coronel Varela Gomes em 1975, mas o que não me parece que mereça alguma discussão é a admiração pela coragem e integridade desse Homem.
Todos os Natais querem dizer o mesmo, para pais, filhos e povos. Uma esperança nova.
Obrigada pela partilha.
Júlia, tenho seguido sempre,e sen-
tido também, a natureza e o gran-
de valor de oportunidade das tuas
intervenções.A publicação desta carta, como outras que vi em Ango- la,em Zala,fez-me reviver comovida-mente idênticasexperiências. Quan- do a guerrilha nos matava alguém, eu tinha o trabalho de fazer o espólio do falecido para enviar à família.Abrir os bolsos e acartei-ra,contar as cartas, os retratos, paisagens humanas, algum dinheiro, tudo isso me doía muito.Felismente
ainda me foi possível contar tudo num livro da Contexto, «Angola 61».
Com a minha admiração,
Rocha de Sousa
Uma bela prenda de natal!
Obrigado, Júlia.
Jorge Vasconcelos
obrigada, júlia
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Comovente!
Uma partilha realista que não deveria ser esquecia. Não será por certo!
Um abraço carinhoso e grata pela partilha
Extremamente comovente. Não tenho palavras. Beijos, Júlia.
Ouve...
Parabéns, só tu mesmo para arrancares isto da memória. Em boa altura o fizeste.
Tudo a correr bem em 2009.
Bjs
Silvia
Da oportunidade de divulgar esta interessante carta de Varela Gomes ressaltam, também, outras abordagens:
- o teu espírito solidário que, tendo o conhecimento da missiva, te leva, de imediato, a pensar em nós, os teus leitores, partilhando-a;
- a tua atenção na preservação activa e efectiva da(s) memória(s), sedimento do passado que alicerça o nosso presente na construção do futuro de todos.
Eis-te, pois, no teu melhor: solidária, amiga, irmã.
Vale muito a pena que existas.
Um beijo grande.
Venho aqui para algo que não me é nada habitual: comentar com um post (normalmente é ao contrário...)e repetir um comentário em vários blogs, mas hoje justifica-se. Obrigado por tudo.
"Regresso-me no calor dessa escuridão que me revela todo o brilho da memória. Verto um rio de saudade só porque sou fonte de mim. No ritual doce e sangrento das mãos que se procuram. No abraço seguro dos olhares cúmplices. Estrela d' Alva pode ser, sim. Entre o adormecer dos sonhos e a madrugada das marés. Assim, no teu ir-e-vir eterno!
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Teve de ser..."
Um beijo especial para ti, Júlia!
Queridos Amigos,
Muito obrigada a todos que tiveram a generosidade de me visitar e comentar este post.
Sinto-me gratificada por ter atingido os objectos: resgatar a memória das Memórias que não podem ser esquecidas.
Um beijo especial para todos!
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