Mário Cesariny, Sophia, E. de Andrade, Jorge de Sena, Álvaro de Campos, João Maia, Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, M.S. Lourenço, David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti, Manuel Alegre, António Gedeão, António Botto, Cesário Verde, Fausto Bordalo Dias, António Nobre
Agarro a madrugada
E entro em Lisboa cego com a névoa da manhã
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
Esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
Rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água
O Tejo esplende entre navios
Lisboa é boa e matinal;
Flutuam barcos, casarios
Na mesma onda musical.
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da rua do Ouro
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
ver nascer o Sol desse Castelo
Que domina Lisboa no mais belo
E surpreendente quadro de beleza!
Lisboa, a mais gentil, a portuguesa
E nobre capital de um povo grande
No sofrimento e na resignação,
que manhã cedo acorda e canta
Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
Em Lisboa, a sair para o meio da rua.
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas,
varinas, caixeiros, desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos mictórios
para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Digo:
Lisboa
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Imensa, troglodita, ambiciosa
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes...”
Eu sei. É uma rapariga
Descalça e leve
Teus seios são as colinas
Teu rosto de sol e de Tejo
Um vento súbito e claro
Nos cabelos
Algumas rugas finas
É varina, usa chinela
Mora num beco de Alfama
Mora num’água furtada
E chamam-lhe a madrugada
E chamam-lhe a madrugada
Tem movimentos de gata
Tem algas na cabeleira
Seu nome próprio, Maria.
Seu apelido, Lisboa.
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
menina e moça,
amada Cidade
mulher da minha vida
Lisboa menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Cidade a ponto luz bordada
Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre
Outra vez te revejo
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -
Ó Tejo nunca inaugurado
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
evoco, então, as crónicas navais:
As armas, pá.
E os barões, pá.
Assinalados, pá.
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
enxárcias, gurupés, papafigos, traquetes,
mastros, lemes, escotas, brandais e mastaréus.
âncoras, adriça, cabos-mastro
Que solicitam mar e desafio.
Viagens e naufrágios nos mares do cio
meu país de marinheiros!...
o meu país das Naus, de esquadras e de frotas!
Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Ó ai meu bem!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Como baila o bailador
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Ó meu amor
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
E a caravela também!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
Ó bonitinha!
De encostas explodindo em verde vegetação!
que é das penas,
Homens que saqueastes tranquilas populações africanas
que é das mágoas
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Sendo nós como a sardinha
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
a voar por cima das águas
Os prémios da Novidade de quem, de cabeça baixa
ó é tão lindo
Arremete contra o mistério de novos mares!
E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés:
o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer.
dói-me o Tejo vazio dói-me a miséria
apunhalada na garganta.
Regresso à cidade como à liberdade
Eu sou o homem da cidade.
Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
(André Gago integra a Comissão de Honra da recandidatura de António Costa ao cargo de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa; preparou esta Miscelânea dos Poetas à Cidade de Lisboa que declamou ontem, 30 de Setembro, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, num espectáculo integrado na campanha eleitoral)
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